O gigante Adamastor
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Porém já cinco Sóis eram passados
Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca doutrem navegados,
Prosperamente os ventos assoprando,
Quando uma noite estando descuidados,
Na cortadora proa vigiando,
Uma nuvem que os ares escurece
Sobre nossas cabeças aparece.
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Tão temerosa vinha e carregada,
Que pôs nos corações um grande medo;
Bramindo o negro mar, de longe brada
Como se desse em vão n’lgum rochedo.
“Ó Potestade, disse, sublimada!
Que ameaço divino, ou que segredo
Este clima e este mar nos apresenta,
Que mor cousa parece que tormenta?”
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Não acabava, quando uma figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura,
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má, e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.
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Tão grande era de membros, que bem posso
Certificar-te, que este era o segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete milagres foi do mundo.
C’um tom de voz nos fala horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar profundo:
Arrepiam-se as carnes e o cabelo
A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo.
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E disse: “Ó gente ousada, mais que quantas
No mundo cometeram grandes cousas,
Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,
E por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois os vedados términos quebrantas
E navegar meus longos mares ousas,
Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,
Nunca arados de estranho ou próprio lenho;
42
Pois vens ver os segredos escondidos
Da natureza e do úmido elemento,
A nenhum grande humano concedidos
De nobre ou de imortal merecimento,
Ouve os danos de mi, que apercebidos
Estão a teu sobejo atrevimento,
Por todo o largo mar e pela terra,
Que ainda hás de sojugar com dura guerra.
43
Sabe que quantas naus esta viagem
Que tu fazes, fizerem, de atrevidas,
Inimiga terão esta paragem
Com ventos e tormentas desmedidas!
E da primeira armada, que passagem
Fizer por estas ondas insofridas,
Eu farei, de improviso, tal castigo,
Que seja mor o dano que o perigo.!
44
Aqui espero tomar, se não me engano,
De quem me descobriu, suma vingança;
E não se acabará só nisto o dano
Da vossa pertinace confiança:
Antes, em vossas naus vereis, cada ano,
Se é verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios, perdições de toda sorte,
Que o menor mal de todos seja a morte!
[…]
49
Mais ia por diante o monstro horrendo
Dizendo nossos fados, quando alçado
Lhe disse eu: Quem és tu? que esse estupendo
Corpo certo me tem maravilhado!
A boca e os olhos negros retorcendo,
E dando um espantoso e grande brado,
Me respondeu, com voz pesada e amara,
Como quem da pergunta lhe pesara:
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“Eu sou aquele oculto e grande Cabo,
A quem chamais vós outros Tormentório,
Que nunca a Ptolomeu, Pompônio, Estrabo,
Plínio, e quantos passaram, fui notório.
Aqui toda a Africana costa acabo
Neste meu nunca visto Promontório,
Que para o Polo Antárctico se estende,
A quem vossa ousadia tanto ofende.”
[…]
CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. Edição crítica de Francisco da Silveira Bueno. 10. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. [Fragmento]
Vocabulário
Bramir: ecoar, repetir com estrondo um som.
Potestade: divindade, pessoa de grande poder.
Esquálida: suja, malcuidada, desalinhada.
Quebrantar: vencer, debilitar.
Lenho: embarcação.
Paragem: lugar, espaço em mar acessível ao ato de navegar.
Pertinace: obstinada, perseverante.
Promontório: cabo (geográfico) constituído por uma elevada montanha.