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Não há línguas fáceis ou difíceis

Uma das mais interessantes descobertas, do ponto de vista europeu, produzida pelas análises de numerosas línguas indígenas, isto é, línguas faladas nos continentes que os europeus “descobriram”, é que não é verdade que existem línguas simplificadas, ou, para utilizar um termo mais corrente, primitivas. Era um lugar comum (pode ser que o seja ainda hoje, para muitos, por desinformaçao) imaginar que a civilização européia constituía progresso, melhoria, desenvolvimento, avanço. O ponto máximo até então atingido pela humanidade. Mesmo no século XIX, muito depois, portanto, do Iluminismo [no interior do qual se gestou essa ideia de progresso), ainda se imaginava, por influência das teorias correntes sobre a evolução, que as civilizações e as sociedades estavam submetidas a uma evolução similar à das espécies (talvez isso seja mais lamarckismo, mas, deixemos os detalhes de lado, por enquanto). Parecia óbvio pensar o seguinte: há povos atrasados, que mal conhecem o fogo e o tacape, que nem agricultores são. Parecia lógico pensar que, se são primitivos no que se refere a sua sobrevivência e a suas artes, deve ser porque ainda não desenvolveram “totalmente” as capacidades típicas dos seres humanos, vale dizer, a razão, a inteligência. Logo, devem falar uma língua primitiva, mais próxima dos grunhidos dos gorilas do que da sofisticação de uma língua como o gregos o latim, o inglês, o francês, o alemão. Ora, esse raciocínio só foi possível como decorrência do desconhecimento das estruturas internas dessas línguas. Quando os próprios europeus analisaram as línguas indígenas, isto é, quando missionários e linguistas descreveram as gramáticas de tais línguas, fizeram descobertas surpreendentes (para os preconceituosos). Descobriram que línguas consideradas primitivas podem ser classificadas ao lado de línguas ditas civilizadas (segundo Mattoso Câmara, Hill afirma a existência de semelhanças estruturais entre o latim e o esquimó, Nida mostra que os processos morfológicos tornam “aparentadas” línguas como o latim, o sânscrito e o grego com o nwátal, do México e o haussá, da África, por exemplo).

Afirmar que há línguas primitivas é um equívoco equivalente a afirmar que a Lua é um planeta, que o Sol gira ao redor da Terra, que as estrelas estão fixas em uma abóbada. Tais equívocos foram correntes, mas hoje há um argumento forte contra eles: o conhecimento científico. Da mesma maneira, hoje se sabe que todas as línguas são estruturas de igual complexidade. Isso significa que não há línguas simples e línguas complexas, primitivas e desenvolvidas. O que há são línguas diferentes. Uma análise de qualquer aspecto de qualquer das línguas consideradas primitivas revelará que as razões que levam a esse tipo de juízo não passam de preconceito e(ou) de ignorância. Não é decente, nesse domínio, basear‐se no preconceito do “ouvi dizer”. Hoje, a bibliografia sobre línguas no mundo é abundante; qualquer pessoa interessada pode descobrir que, há muito tempo, os estudiosos mostraram que é ridícula a ideia de que há línguas primitivas, só porque são faladas por povos pouco cultos, segundo um critério pessoal – por exemplo, não escrevem, não moram em prédios de apartamentos, não têm armas sofisticadas… De certa forma, essa revolução copernicana, no domínio das línguas, ainda não se tornou conhecida do grande público…

Sírio Possenti. Por que (não) ensinar gramática na escola. 2.ª reimp. Campinas‐SP: Mercado de letras: Associação de Leitura do Brasil, 1998 (com adaptações).

Sírio Possenti

Sírio Possenti

Sírio Possenti é licenciado em Filosofia e tem mestrado e doutorado em Linguística. É professor titular (Análise do Discurso) no Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem (Unicamp). Estuda humor. Tem interesse pelos discursos jornalístico e publicitário. Dedica-se ao estudo de textos breves, especialmente piadas, pequenas frases e fórmulas. Pela Contexto é autor dos livros Ethos Discursivo, Fórmulas Discursivas, Discurso e Desigualdade Social, A Desordem do Discurso, Humor, Língua e Discurso e Sentido e Significação.