(onde se devassam truques, máscaras e maquiagem dos bastidores do que se chama de literatura)
Um dia apareceremos leitor nas estatísticas catalogados em ocorrência policial.1
Com o bloco nas ruas, vamos estabelecer que literatura não tem uma definição. Ela não pode ser definida como podem ser definidos – com certa unanimidade – um composto químico, um acidente geográfico, um órgão do corpo humano.
Pode-se definir, sem muito sangue na arena, água, cordilheira, aparelho respiratório. Mas a poeira é muita quando se tenta definir literatura, liberdade… e não é só porque ambas começam pela letra L! Arte e cultura não têm a mesma inicial, começam por A e por C, respectivamente, e também é complicadíssimo defini-las!
Nesse campo, as perguntas são muitas e as respostas mais numerosas ainda. Há tanta gente pensando no assunto (aliás, sempre houve) e tantas e tão diferentes são as respostas sugeridas que não dá para eleger uma delas como verdadeira e jogar fora todas as outras. Aliás, até que dá, para os ingênuos e os simples, que lêem um livrinho ou outro e saem por aí achando que literatura é isso ou aquilo, que arte é aquilo ou isso.
Já nosotros, nem simples nem ingênuos, mas galhardos sócios do Clube dos Leitores Anônimos, achamos que literatura é isso, aquilo e mais aquiloutro, não é mesmo?
O que é literatura? é uma pergunta complicada justamente porque tem várias respostas. E não se trata de respostas que vão se aproximando cada vez mais de uma grande verdade, da verdade-verdadeira. Cada tempo e, dentro de cada tempo, cada grupo social tem sua resposta, sua definição. Respostas e definições – vê-se logo – para uso interno.
Ao longo dos dois mil e tantos anos que nos separam de – digamos – Platão, vários têm sido os critérios pelos quais se tenta identificar o que torna um texto literário ou não-literário: o tipo de linguagem empregada, as intenções do escritor, os temas e assuntos de que trata a obra, o efeito produzido pela sua leitura… tudo isso já esteve ou ainda está em pauta quando se quer definir literatura. Cada um desses critérios produziu definições consideradas corretas. Para uso interno daquele grupo ou daquele tempo, correspondendo as respostas ao que foi (ou é) possível pensar de literatura num determinado contexto.
Já observou a arguta leitora como as definições sempre funcionam para quem as produz? E por que não funcionariam? Afinal, pensadores, escritores, artistas e demais envolvidos em teorias e práticas de literatura discutem, escrevem, polemizam (antigamente às vezes até duelavam!) e modulam conceitos de literatura que correspondem ao contexto de produção de seu tempo, aos horizontes dos leitores, às práticas de leitura em vigor. Por isso parecem explicar de forma convincente o que é literatura.
Mas só temporariamente.
Quando surgem novos tipos de poemas, de romances e de contos e outras multidões de leitores entram em cena, aquela livralhada toda passa a ser lida de forma diferente. Os novos leitores piscam os olhos e limpam os óculos, engatam novas discussões, formulam novas teorias, propõem novos conceitos até que a poeira assenta para, de novo, levantar-se em nuvem tempos depois.
Ou seja, há relação profunda entre as obras escritas num período – e que, portanto, são a literatura desse período – e a resposta que esse período dá à questão o que é literatura?
Há uma espécie de solidariedade entre práticas e teorias da literatura: Em outras palavras, e com perdão da obviedade: os conceitos de literatura (isto é, certos conceitos, por exemplo, os de tradição filosótica) são inspirados pela leitura das obras literárias. Isto é, de certas obras, de livre trânsito em certos meios… Reciprocamente, as obras literárias de um certo tempo incorporam tais formulações, validando-as e validando-se como literatura aos olhos de seus formuladores.
Teorias e práticas literárias, então, parecem condenadas a se repetirem umas às outras. Se fossem mero eco recíproco, o texto literário e suas teorias chegariam ao impasse do silêncio. Mas não é o que ocorre.
Na criação, a ruptura é o momento da vanguarda e, no campo teórico, é o momento do novo paradigma. Vanguarda e novos paradigmas teóricos, assim, patrocinam a subversão do que se dizia e se fazia em nome da literatura.
Engendram-se aí novas respostas à velha indagação: o que é literatura?
E recomeça o diálogo, não só do texto literário com sua teoria, mas da produção literária de um dado período com o conjunto de obras que a precedeu. Para nomear esse ininterrupto dialogo de uma obra com as muitas outras que a precederam ou lhe são contemporâneas, os estudos literários cunharam a expressão intertextualidade. Que o leitor palavroso me permita este palavrão de oito sílabas […]!
Também pela intertextualidade rompe-se o círculo de teorias e de práticas que constituem um espelho no qual mutuamente se contemplam ambas. Na releitura do passado, mantém-se a idéia de uma linhagem de autores e de textos que constituem a grande família da literatura, como num álbum. Mas as fotos no álbum mudam de posição, ganham novas legendas, algumas se perdem (como os oradores estudados em antigos cursos de literatura brasileira), outras se acrescentam (como foi o caso de Shakespeare, na Inglaterra).
É a vida que continua.
Com a imagem de um álbum de retratos fica a idéia de que as definições propostas para literatura importam menos do que o caminho percorrido para chegar a elas. Ou, dizendo com Fernando Pessoa, o que importa mesmo é esperar D. Sebastião, quer venha ou não.
Acompanhar, então, como a literatura foi concebida, praticada, interpretada e avaliada em diferentes momentos é um caminho sugestivo que pode multiplicar nossos finalmentes ou, pelo menos, fragilizar finalmentes alheios. No tempo devido lá iremos, e nessa vereda teremos multidões de companheiros e companheiras, que essa trilha é a mais batida dos estudos literários.
Mas, antes, em foco a íntima e delicada relação da literatura com a linguagem.
1 Paixão, Fernando. “Retrato”, in 25 azulejos. São Paulo, Iluminuras, 1999, p. 35.
LAJOLO, Marisa. Literatura: leitores & leitura. Editora Moderna, 2001.