Uma das maiores sortes que podemos ter na vida é uma infância feliz. Eu tive uma infância muito feliz. Tinha uma casa e um jardim; uma ama sábia e paciente; como pai e mãe duas pessoas que se amavam de todo coração e que foram um sucesso como casal e como pais.
Olhando para trás agora penso que nosso lar era muito feliz. Tal devia-se em grande medida ao meu pai, pois o meu pai era um homem adorável. Atualmente subestima-se o valor da qualidade da afabilidade. As pessoas têm tendência a perguntar se um homem é inteligente, trabalhador, se contribui para o bem-estar da comunidade, se “conta” no grande esquema das coisas. Charles Dickens colocou a questão de forma deliciosa em David Copperfield:
“Seu irmão é um homem afável, Pegotty?’ – perguntei cautelosamente.
‘Oh, é um homem tão afável’ – exclamou Pegotty.”
Façam a vós mesmos essa pergunta em relação à maioria de vossos amigos e conhecidos e talvez vos surpreenda descobrir como é raro que a resposta seja a mesma de Pegotty.
Pelos padrões modernos, o meu pai não suscitaria muita aprovação. Era um homem preguiçoso. Estávamos nos dias dos rendimentos independentes e quem tinha um rendimento independente não trabalhava. Não se esperava que trabalhasse. Tenho uma forte desconfiança de que meu pai, de qualquer maneira, não seria um bom trabalhador…
Foi enquanto trabalhava no dispensário que pensei pela primeira vez em escrever uma história policial. A ideia estava na minha mente desde o desafio de Madge – e o meu trabalho atual parecia oferecer uma boa oportunidade. Ao contrário do trabalho de enfermagem em que havia sempre algo a fazer, no dispensário havia uma alternância entre períodos muito ocupados e outros muito calmos.
Comecei a pensar no tipo de história policial que poderia escrever. Uma vez que estava rodeada de venenos, talvez seria natural que o método de eleição fosse morte por envenenamento. Decidi por um fato que me parecia potencial. Brinquei com a ideia, agradou-me e, finalmente, aceitei-a.
Depois passei às personagens. Quem seria envenenado? Quem envenenaria? Onde? Quando? Como? Por quê? E por aí afora… Naturalmente que tinha de haver um detetive. Nessa altura eu estava muito imersa na tradição de Sherlock Holmes. Portanto, comecei a pensar em detetives. Não Sherlock Holmes, claro: tinha de inventar o meu próprio detetive e ele teria que ter um amigo, uma espécie de pau mandado – isso não seria muito difícil. Voltei às outras personagens… Continuei a brincar com a minha ideia durante algum tempo. Partes dela começaram a crescer. Agora já conseguia ver o assassino. Teria de ter um aspecto bastante sinistro. Uma barba negra – que, na altura, eu considerava algo muito sinistro. Havia uns conhecidos nossos que se tinham mudado recentemente para perto de nós. O marido tinha a barba preta e a mulher era mais velha do que ele e muito rica… Nos momentos de ócio, partes de minha história policial agitavam-se na minha cabeça. Tinha o princípio bem estabelecido e o final encarrilhado, mas havia lacunas complicadas pelo meio.
[…]
CHRISTIE, Agatha. Autobiografia. Lisboa: Asa, 1977. p. 704. [Fragmento]
Vocabulário
Ama: babá, provedora de cuidados com crianças / jovens. Afabilidade: delicadeza, carinho, afetividade.
Charles Dickens: escritor inglês do século XIX.
David Copperfield: livro escrito por Charles Dickens, no qual o autor narra, por meio da ação de uma personagem, ações em parte autobiográficas.
Desafio de Madge: desafio proposto por Madge, irmã de Agatha Christie, que disse à escritora que ela não seria capaz de escrever uma boa história de detetive.
Dispensário: estabelecimento, de ordem pública ou privada, que presta assistência farmacêutica e médica.
Encarrilhado: com boa orientação, bem encaminhado.
Sherlock Holmes: personagem (detetive) da literatura britânica, presente na obra escrita por Arthur Conan Doyle.