Contar com recém-descoberta para destruir novas gerações de lixo é irresponsabilidade
Meses antes de morrer, o genial físico inglês Stephen Hawking cometeu a imprudência de proferir uma frase que marcou negativamente a luta de muitos que consagram suas vidas em defesa deste planeta.
“Estamos ficando sem espaço aqui e os únicos lugares disponíveis para irmos estão em outros planetas, outros universos”, disse Hawking, ignorando talvez o efeito devastador que seu diagnóstico teria sobre os que acreditam que ainda há tempo e recursos para virar o jogo.
Se um dos maiores cientistas de todos os tempos vaticinou o que pode ser interpretado como a falência dos esforços em favor da sustentabilidade e do uso inteligente dos recursos, para que desperdiçar tempo e energia em defesa da nossa casa planetária?
Sorry, Mr. Hawking! Ainda temos muito o que fazer antes de entregar os pontos. Até porque não consigo imaginar um plano B que seja mais viável e menos custoso do que resolvermos os problemas neste cantinho do universo.
Dias atrás me lembrei dessa frase infeliz de Hawking quando acompanhei a repercussão de uma descoberta acidental que foi apresentada em boa parte da mídia como a solução para o problema dos plásticos: a criação de uma enzima capaz de comê-los. “Pode poluir à vontade que um exército de enzimas vai devorar esse lixo”, alguém poderá dizer.
Assim, decisões importantes como a da França, que determinou a suspensão (a partir de 2020) da fabricação e da comercialização de plásticos descartáveis na forma de pratos, talheres e copos poderiam ser vistas como exageradas. As restrições impostas pela China (e outros países) à circulação de sacolas seriam vistas como desnecessárias.
Até a Califórnia, que tomou a dianteira na luta contra os canudos plásticos (boa parte dos 500 milhões de canudinhos descartados por dia nos Estados Unidos vai parar no lugar errado), seria rotulada como extremista ou radical.
Analisando os fatos com bom senso, a tal enzima —devidamente testada para que não ofereça riscos à saúde ou ao ambiente— poderia até ser uma aliada para eliminar estoques de plástico velho. Mas contar com elas para destruir as novas gerações de lixo é de uma irresponsabilidade atroz.
Manter a farra dos plásticos descartáveis é crime de lesa-planeta, e qualquer estudante neófito das ciências ambientais sabe que a natureza não produz “lixo”, tudo o que nela existe se transforma indefinidamente sem gerar estoques de difícil deglutição.
O que precisamos é de menos enzimas e mais vergonha na cara. E, lembrando o genial físico, o universo não merece colonizadores humanos que repliquem a metástase da insustentabilidade em outras galáxias.
TRIGUEIRO, André. O que precisamos é de menos enzima que come plástico e mais vergonha na cara. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/andre-trigueiro/2018/04/o-que-precisamos-e-de-menos-enzima-que-come-plastico-e-mais-vergonha-na-cara.shtml>. Acesso em: 19 ago. 2021.