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O abutre

Era um abutre que me dava grandes bicadas nos pés. Já havia dilacerado sapatos e meias, e as bicadas iam penetrando na minha carne. De vez em quando, agitado, o abutre esvoaçava em volta de mim e logo retomava sua faina.

Um homem passava pelo local e ficou observando a cena por alguns momentos; em seguida me perguntou como podia eu suportar aquele abutre.

— Acontece que estou sem defesa — respondi. — Ele apareceu e me atacou. Claro que tentei lutar, tentei mesmo estrangulá-lo, mas o bicho é muito forte, um bicho desse quilate! Ele ia até mesmo me atacando o rosto, por isso achei melhor sacrificar meus pés. Como pode ver, meus pés estão quase em frangalhos.

— Mas como pôde se deixar torturar dessa maneira! — disse o homem. — Bastaria um tiro e pronto!

— Acha mesmo? — disse eu. — O senhor gostaria de disparar um tiro?

— Claro — disse o homem. — É só ir até a minha casa e apanhar a espingarda. Consegue aguentar aí mais meia hora?

— Não sei lhe responder — falei.

Mas ao sentir uma dor lancinante, acrescentei:

— De qualquer maneira, vá logo, estou lhe pedindo.

— Bem — disse o homem. — Vou o mais rápido possível.

O abutre escutara a conversa tranquilamente, olhando ora para mim ora para o homem. Vi que entendera tudo. Ele ergueu-se com um bater de asas e em seguida, empinando-se para ganhar equilíbrio, como um lançador de dardos, enfiou-me o bico boca adentro até o mais profundo do meu ser. Ao cair, com que alívio senti que o abutre se engolfava impiedosamente nos abismos infinitos do meu sangue.

Franz Kafka. In: Flávio Moreira da Costa, org. Os melhores contos de medo, horror e morte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p. 121-2.

Franz Kafka
Franz Kafka

Franz Kafka nasceu em 1883, em Praga, no seio de uma família da pequena burguesia judia de expressão alemã. Começou a escrever os seus primeiros textos em 1904. Em 1906, terminou os seus estudos universitários, doutorando-se em Direito. Em vida, publicou apenas sete pequenos livros e alguns textos em revistas. De entre estes livrinhos e textos, destaca-se A Metamorfose, que veio a lume em 1915. Esta pequena novela viria a afirmar-se como uma das suas obras de referência. A 3 de junho de 1924, não resistindo à tuberculose diagnosticada em 1917, morre em Kierling, a poucos quilómetros de Viena, deixando três romances fragmentários, que seriam publicados postumamente pelo seu amigo e testamenteiro Max Brod: O Processo (1925), O Castelo (1926) e América (1927), a que se seguiram volumes com contos, cartas e diários. A sua obra, centrada no homem solitário moderno, refém de uma vida absurda, tornar-se-ia uma das mais influentes do mundo literário do século xx.