Uma das comparações que os estudiosos de variação linguística mais gostam de utilizar é a da língua com a vestimenta. Esta, como sabemos, é bastante variada, indo da mais formal (longo e smoking) à mais informal (biquíni e sunga, ou camisola e pijama). A ideia dos que fazem essa comparação é a seguinte: não existem, a rigor, formas linguísticas erradas, existem formas linguísticas inadequadas. Como as roupas: assim como ninguém vai à praia de smoking ou de longo, também ninguém casa de biquíni e de sunga, ou de camisola e de pijama (sem negar que estas sejam vestimentas, e adequadas!), assim ninguém diz “me dá esse troço aí” num banquete público e formal nem “faça-me o obséquio de passar-me o sal” numa situação de intimidade familiar.
Os gramáticos e os sociolinguistas, cada um com seu viés, costumam dizer que o padrão linguístico é usado pelas pessoas representativas de uma sociedade. Os gramáticos dizem isso, mas acabam não analisando o padrão, nem recomendando-o de fato. Recomendam uma norma, uma norma ideal. Vou dar uns exemplos: se o padrão é o usado pelos figurões, então deveriam ser considerados padrões o verbo “ter” no lugar de “haver”; a regência de “preferir x do que y”, em vez de “preferir x a y”; o uso do anacoluto (A inflação, ela estará dominada quando…); a posição enclítica dos pronomes átonos. O que não significa proibir as mais conservadoras. Algumas dessas formas “novas” aparecem em muitíssimo boa literatura, em autores absolutamente consagrados, que poderiam servir de base para que os gramáticos liberassem seu uso – para os que necessitam da licença dos outros.
Vejam-se esses versos de Murilo Mendes: “Desse lado tem meu corpo / tem o sonho / tem a minha namorada na janela / tem as ruas gritando de luzes e movimentos / tem meu amor tão lento / tem o mundo batendo na minha memória / tem o caminho pro trabalho. Do outro lado tem outras vidas vivendo da minha vida / tem pensamentos sérios me esperando na sala de visitas / tem minha noiva definitiva me esperando com flores na mão / tem a morte, as colunas da ordem e da desordem.”
Faltou ao poeta acrescentar: tem uns gramáticos do tempo da onça / de antes do tempo em que se começou a andar pra frente.
Não vou citar Drummond de Andrade, com seu por demais conhecido “Tinha uma pedra no meio do caminho…”, nem o Chico Buarque de “Tem dias que a gente se sente / como quem partiu ou morreu…”
Mas acho que vou citar “Pronominais”, do glorioso Oswald de Andrade: Dê-me um cigarro / Diz a gramática / Do professor e do aluno / E do mulato sabido / Mas o bom negro e o bom branco / Da nação brasileira / Dizem todos os dias / Deixa disso camarada / Me dá um cigarro.
Quero insistir: ao contrário do que se poderia pensar (e vários disseram), não sou anarquista, defensor do tudo pode, ou do vale tudo. Nem estou dizendo que “Nós vai” é igual a “Tem muito filho que obedece os pais”. O que estou fazendo é cobrar coerência, um pouquinho só: se o padrão vem da fala dos bacanas, se os mais bacanas são os poetas consagrados, por que, antes das dez, numa aula de literatura, podemos curtir seu estilo e em outra aula, depois das onze, dizemos aos alunos e aos demais interessados: viram o Drummond, o Murilo, o Machado, o Guimarães Rosa? Que criatividade!!! Mas vocês não podem fazer como eles.
POSSENTI, Sírio. A cor da língua e outras croniquinhas de linguística. Campinas: Mercado de Letras, 2001. p. 111-112. (Adaptado).