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Literatura

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A literatura, que é a arte casada com o pensamento, e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.

Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. Os críticos da casa pequena soem apontar que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom em uma memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira.

Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na diversidade do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o houvermos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido. Não creio que a história seja mais, em seu grande panorama desbotado, que um decurso de interpretações, um consenso confuso de testemunhos distraídos. O romancista é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é complexo como tudo.

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PESSOA, Fernando. Livro do desassossego por Bernardo Soares. Lisboa: Assírio Alvim, 2006. [Fragmento]

Vocabulário

mácula: mancha, sujeira, nódoa.
superfluidade: abundância inútil, demasia, excesso.
soer: ocorrer ou acontecer geralmente, costumar.
prolixo: muito longo, difuso, superabundante, demasiado.

Fernando Pessoa
Fernando Pessoa

Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu aos 13 de junho de 1888, em Lisboa. Em 1896, vai com a mãe e padrasto para África do Sul, onde realiza seus primeiros estudos. Devido a esse fato, o inglês converteu-se em sua segunda língua, que utilizou para escrever diversos poemas.
Em 1905, Fernando Pessoa retornou a Lisboa, para se matricular no Curso Superior de Letras, que abandonou um ano depois, motivado por uma greve de estudantes. Em 1913 escreveu a poesia Pauis e, em 1914, os primeiros poemas de seus heterônimos, Alberto Caieiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis.
Consagrado escritor, Fernando Pessoa também foi astrólogo, crítico literário, tradutor, correspondente comercial e inventor. Seu legado permanece vivo até hoje. A vida do poeta foi dedicada a criar e escrever, principalmente através de seus heterônimos. Pessoa faleceu em Lisboa, em 30 de novembro de 1935, com 47 anos.