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Fonte dos Amores

Onde se estende o Passeio Público, do Rio de Janeiro, refletiam-se ao sol as águas estagnadas da lagoa do Boqueirão, terrenos do Campo da Ajuda, com orla de lama e orquestra de sapos.

Para o alto, na direção do morro de Santa Teresa, erguia-se uma casinha romântica, ao lado de uma palmeira ornamental. Morava aí a linda Suzana, a moça mais bonita e mais pobre dos arredores, com sua velha avó.

Suzana era noiva de Vicente Peres, auxiliar de botânica de Frei Conceição Veloso, apaixonado e ciumento.

Dom Luís de Vasconcelos e Souza, décimo segundo Vice-Rei do Brasil, governava.

Vez por outra, passeando, o futuro Conde de Figueiró encontrava Suzana, parando para admira-la. E acabou desejando por sua a menina carioca, descuidada e simples, moradora na solidão da lagoa sinistra.

Cheio de planos de reforma, Dom Luís fazia-se acompanhar pelo seu executor fiel nas construções e sonhos, Valentim da Fonseca e Silva, Mestre Valentim, mestiço, fusco e genial, cujos modelados orgulham a torêutica brasileira.

O Vice-Rei e Mestre Valentim, ocultos numa touceira de bambus, espreitavam Suzana, surpreendendo-a em idílio com o enamorado Vicente Peres.

O noivo soubera dos encontros com Dom Luís, e lamentava a traição ingrata da futura esposa. A menina defendia-se, defendendo o Vice-Rei, tão longe e tão próximo.

— Não deve acusar nem desconfiar de mim. Dom Luís é um coração de ouro, pai dos pobres, justiceiro e valente. Nunca oprimiu nem perseguiu ninguém. Deus o protege porque ele é forte e generoso. Em vez de você pensar que ele está contra a nossa felicidade, deve, bem antes, procurá-lo e pedir-lhe a proteção. Estou convencida de que tudo ficará melhor para nós. Tenha confiança nele como eu tenho…

Dom Luís, bem contra a sua vontade, enterneceu-se. Jurou, mentalmente, que faria melhor serviço a Deus, protegendo um casalzinho jovem, que conquistando uma mocinha pobre. Sem fazer rumor, sempre com Mestre Valentim, recuou, ganhou o piso sinuoso da estrada, montou a cavalo e voltou para o Paço, sonhando as compensações que Vicente Peres merecia.

No outro dia mandou-o chamar. Nomeou-o secretário de Frei Veloso, que estava classificando o material brasileiro da “Flora Fluminense”, e mais um cargo na Alfândega, quando terminasse a tarefa. E, meses depois, acompanhou Suzana e Vicente ao altar, na manhã do casamento, como padrinho e protetor.

A lagoa do Boqueirão foi vencida pelos trabalhos que Mestre Valentim chefiava, sob a palavra animadora do Vice-Rei. Sobre o terreno consolidado plantou-se um horto, e dezenas de árvores cobriram de sombras agasalhadoras o que dantes era lodo e cisco. Nascera, por mais de cem anos, o mais popular e querido dos logradouros do Rio de Janeiro.

Mestre Valentim, sob comando, concebeu e realizou uma fonte-monumento, a Fonte dos Amores, nome de mistério que a lembrança de Suzana presidia e explicava.

Acostada ao muro do lado do mar, via-se uma cascata. No cimo, alta e esguia, subia uma palmeira de bronze, representando aquela que cobrira a choupana desaparecida. Entre as pedras, irregulares e artísticas, pisavam três garças de bronze, leves, airosas, ignorantes do perigo oculto, materializado em dois grandes jacarés, de caudas entrelaçadas, goelas abertas, de onde caía, em continuidade sonora, as águas límpidas.

As garças eram Suzana, Vicente e a avozinha. Os dois jacarés personalizavam o próprio Vice-Rei e seu companheiro, o modelador do fontenário, inaugurado em 1783.

O tempo derrubou a palmeira de bronze, lembrança da tranquilidade primitiva e bucólica. As três garças, memórias das vidas doces e confiadas, desapareceram.

Quem for visitar o Passeio Público, e olhar a Fonte dos Amores, verá que somente os dois jacarés, símbolo da cobiça astuciosa, resistiram e estão vivendo, mandíbulas abertas, através dos séculos…

CASCUDO, Luís da Camara. Lendas brasileiras para jovens. São Paulo: Global, 2006.

VOCABULÁRIO:

Fusco: da cor parda.

Torêutica: arte de esculpir.

Touceira: conjunto de espécies vegetais que nascem muito próximas umas das outras.

Idílio: namoro, romance.

Cimo: cume, topo.

Fontenário: relativo à fonte.

Bucólica: simples, singela.

Astuciosa: esperta, ardilosa, maliciosa.

Luís da Câmara Cascudo
Luís da Câmara Cascudo

Um dos mais respeitados pesquisadores do folclore e da etnografia no Brasil, Luís da Câmara Cascudo viveu quase toda a sua vida no Rio Grande do Norte. Lia, recebia visitas e escrevia muito. Em suas viagens, fazia amigos e ouvia histórias. Trocava correspondências com bastante frequência.
Em 1954, foi lançado o seu trabalho mais importante como folclorista, o Dicionário do Folclore Brasileiro, reconhecido no mundo inteiro. No campo da etnografia, publicou vários títulos importantes, como Rede de Dormir, em 1959, e História da Alimentação no Brasil, em 1967. Mais tarde, veio Geografia dos Mitos Brasileiros, com o qual recebeu o Prêmio João Ribeiro da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Cascudo trabalhou até os seus últimos anos de vida, tendo sido agraciado com dezenas de honrarias e prêmios. Morreu aos 87 anos. Até hoje, a sua obra é preservada e divulgada através do Instituto Câmara Cascudo (Ludovicus), que mantém o acervo do autor na mesma casa em que ele residiu por cerca de 40 anos na cidade de Natal.