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Espiral da desigualdade

Metade de toda a riqueza da Terra pertence ao 1% mais rico da população mundial. Essa é, provavelmente, a maior desigualdade que já existiu

Nesses últimos anos, diversos relatórios de organismos internacionais têm chamado atenção para o rápido aumento da desigualdade no mundo.

Os números são alarmantes: segundo a Oxfam, rede de ONGs inglesa, as 85 pessoas mais ricas do mundo concentram a mesma riqueza que os 3,5 bilhões de pessoas mais pobres. Além disso, durante a última crise econômica, o número de bilionários dobrou: passou de 793 para 1.645 pessoas entre 2009 e 2014.

Atualmente, metade de toda a riqueza do mundo é detida pelo 1% mais rico da população mundial. Essa é, provavelmente, a maior desigualdade de riqueza que já existiu na história.

Essas tendências da desigualdade social são bastante preocupantes, dado que a igualdade sempre foi uma das bases da civilização cristã-ocidental – a grande revolução do cristianismo foi proclamar a igualdade de todos perante Deus.

Desde a Revolução Francesa (1789), a liberdade, a igualdade e a fraternidade tornaram-se valores basilares, ideais perseguidos pela grande maioria das sociedades.

Mas, nos dias de hoje, ganha força o discurso de que a desigualdade é natural, inevitável e boa. Os defensores dessas ideias não sabem, mas defendem uma ideia antiga, a do darwinismo social. No fim do século XIX, Charles Darwin escreveu um dos livros mais importantes de todos os tempos, A Origem das Espécies. Esse livro revolucionou a compreensão do mundo ao mostrar que as espécies evoluem por meio da seleção natural e que o homem, o macaco e o cachorro têm ancestrais comuns. A evolução das bactérias, dos peixes, das árvores sempre foi marcada pela luta pela sobrevivência contra os outros seres vivos e um meio ambiente hostil.

Um dos principais seguidores de Darwin foi o filósofo mais importante de seu tempo, Herbert Spencer. Foi ele que sintetizou a seleção natural com a frase “a sobrevivência do mais apto”. Spencer, entretanto, deu alguns passos a mais que Darwin e assegurou que assim também deveria ser a sociedade humana. Assim surgiu o darwinismo social, a ideia de Spencer de que somente os melhores seres humanos devem sobreviver.

Essa ideia teve grande apelo nos Estados Unidos do início do século XX. John Rockfeller, o homem mais rico do mundo naquele momento, dizia que uma rosa só pode ser produzida em seu esplendor e fragrância através do sacrifício dos outros brotos que crescem em torno dele.

Assim também deveria ser a vida humana, pois essa é a lei da natureza. Dessa perspectiva, a concorrência leva ao melhoramento humano e as durezas da vida constroem o caráter. Ajudar os mais pobres piora a sociedade, pois não se estimula o trabalho e se despende recursos escassos com gente que não vale a pena, que degenera a espécie.

Esse tipo de visão também estava na base de diversos tipos de racismo e de ideologias como o nazismo, que pregava que a raça ariana era a melhor e a mais pura. Por isso, para os nazistas, era preciso eliminar não só as pessoas com deficiências físicas e mentais, mas também os judeus, os negros, os ciganos, os homossexuais, os comunistas.

Todos que eram piores que os arianos puros. Como é sabido, essa ideologia levou ao Holocausto, ao assassinato de milhões de pessoas em escala industrial nos campos de concentração alemães.

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Quando se olha mais atentamente para a história recente, o que se percebe é que as desigualdades não são fruto de maiores capacidades de uma pessoa, como a inteligência, a força ou habilidades natas, mas sim consequência do ponto de partida das pessoas, de sua posição social numa estrutura social altamente hierarquizada. As pessoas mais bem-sucedidas não são as que mais se esforçam e que têm mais méritos, mas sim as que têm melhores condições para estudar, que frequentam ambientes culturais mais desenvolvidos, que têm dinheiro para viver sem preocupações mais imediatas e que podem entrar mais tardiamente no mercado de trabalho.

Os pobres, por outro lado, não são pobres porque são preguiçosos e indolentes. Não se pode esquecer que nascer numa família pobre implica inúmeras dificuldades e deficiências: viver num ambiente familiar precário e muitas vezes desestruturado, ter que trabalhar desde cedo e não poder se dedicar aos estudos, conviver com a violência em todos ambientes ao seu redor, passar dificuldades materiais a vida inteira.

Colocada dessa forma, a questão do mérito e do esforço se torna muito relativa: será que um executivo do mercado financeiro que ganha milhões de reais e nasceu em berço esplêndido tem mais méritos que uma empregada doméstica que sempre viveu em uma favela e trabalha muito e ganha pouco mais que um salário mínimo? Seria esta enorme desigualdade de rendimentos compatível com o esforço de cada um?

A ideia de meritocracia é muito forte, pois apela ao valor individual e aos casos excepcionais de ascensão social.

O problema é que os vencedores geralmente são os que possuem um ponto de partida melhor, dado pela posição social que sua família ocupa. O ponto de partida fica oculto sob o manto do mérito individual. Por exemplo, possuir todos os dentes na boca e saber falar diversas línguas são características sociais de um bom executivo, não dotes naturais.

Mas a desigualdade poderia ser boa para a sociedade como um todo, apesar de ser injusta individualmente? Parece que isso também não é verdade. John Maynard Keynes, o maior economista do século XX, mostrou que a desigualdade desestimula o crescimento econômico, pois os mais ricos gastam proporcionalmente menos que os pobres.

Se é razoável imaginar que um pobre tem mais necessidades a satisfazer que um rico, toda renda de um pobre costuma ser gasta.

Diferentemente da renda do rico, que acaba por guardar uma parte de seus rendimentos, por já ter tudo e não ter onde gastar o resto. […]

Thomas Piketty, economista que ficou famoso por escrever sobre esse assunto, também acha que a desigualdade é ruim para a sociedade.

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Vejamos por quê. Os mais ricos não só não consomem tudo que ganham como acumulam patrimônios extraordinários: a mesma Oxfam anunciou, no início do ano, que o 1% mais rico do mundo tem um patrimônio 65 maior que o da metade mais pobre do mundo!

Isso significa que há uma parcela expressiva da população mundial que não precisa trabalhar e pode viver de renda. Ou seja, há dezenas de milhões de pessoas no mundo que não precisam se esforçar e nem ter nenhum mérito além de ser parente de um bilionário para ter sucesso na vida.

Piketty, corretamente, diz que a democracia não pode sobreviver numa sociedade como essa, pois os valores meritocráticos são destruídos por uma desigualdade tão acintosa. Numa sociedade assim, trabalhar muito não significa prosperidade. Muito pelo contrário, o que determina o sucesso é o ponto de partida.

O que os defensores da desigualdade ignoram ou preferem esquecer é que, para que as desigualdades sejam justas e reflitam as capacidades individuais, a igualdade de oportunidades precisa prevalecer.

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Ante essa discussão, o que poderia ser feito para reduzir tamanha desigualdade? A experiência histórica do século XX aponta o aumento dos gastos sociais por parte do Estado como uma das principais formas de redução da desigualdade.

Nos países onde ela diminuiu, o Estado ampliou a oferta de bens e serviços públicos e proveu redes de proteção e assistência social. Dessa forma, foi possível uma maior igualdade social ao se romper com os monopólios sociais da boa educação e saúde antes restritos a uma parcela diminuta da população – a educação pública, gratuita e de qualidade e o serviço de saúde gratuito tornam o ponto de partida mais igual.

Os efeitos do gasto público sobre a desigualdade foram ainda mais intensos onde a arrecadação era mais progressiva, isto é, a taxação era proporcionalmente maior para os mais ricos. Para se adotar tais medidas, no entanto, é indispensável o crescimento econômico.

Criar e generalizar escolas públicas, gratuitas e de qualidade, assim como prover saúde pública decente e seguro-desemprego mostraram-se como formas de permitir que as pessoas fossem incluídas na cidadania.

Ao mesmo tempo, criava oportunidades de trabalho no setor público e alavancava o desenvolvimento econômico através do aumento planejado do consumo e do investimento públicos.

Essas foram as medidas que permitiram que a Europa Ocidental dos Anos Dourados (1945-1973) fosse marcada por sociedades mais justas, iguais e prósperas. Mas como realizar mudanças como essas nos dias atuais, quando o individualismo se tornou generalizado e o darwinismo social ganha força e tem cada vez mais defensores?

ANTUNES, Daví José Nardy. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/educacao/espiral-da-desigualdade/>. Acesso em: 16 ago. 2021. [Fragmento]