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Do rock

Tocam a campainha e há um estrondo em meus ouvidos. A empregada estava de folga, o remédio era atender o mau-caráter que me batia à porta àquela hora da manhã. Vejo o camarada do bigodinho com o embrulho largo e enfeitado.

— É aqui que mora a senhorita Regina Celi?

Digo que não e fulmino o importuno com um olhar cheio de ódio e sono, mas antes de fechar a porta sinto alguma coisa de íntimo naquele “senhorita Regina Celi”, sim, há uma Regina Celi em minha casa, minha própria filha, mas apenas de 12 anos, uma guria bochechuda ainda, não merecia o título e a função de senhorita.

Chamo o homem que já estava no elevador. Eram CDs, a garota encomendara um mundão de CDs numa loja próxima, e pedira que mandassem as novidades, pois as novidades estavam ali, embrulhadinhas e com a nota fiscal bem às claras.

Gemo surdamente na hora de assinar o cheque e recebo o embrulho. A garota dormia impune, o mundo podia desabar, e ninguém a despertaria do sono 12 anos. Deixo o embrulho em cima do som e volto para a cama, forçar o sono e a tranquilidade interior, abalada pelo cheque tão matutino e fora de propósito. Quando ordeno os pensamentos e ambições no estreito espaço do meu pensamento e retomo um sono e um sonho sem cor nem gosto, começa o rock.

Anos atrás, seria começa o beguine. Mas o beguine passou de moda, e o swing, o mambo, o baião e outras pragas vindas de alheias e próprias pragas. Pois aí estava o rock, matinal, cor de sangue e metal inundando o dia e o quarto com sua voz rouca, seu compasso monótono e histérico.

Purgo honestamente meus pecados e lembro o pai, que me aturava a mania pelos sambas de Ary Barroso. O velho não dizia nada, mas me olhava fundo e talvez tivesse ganas de me esganar. Mas me aturava e aturava o meu Brasil brasileiro. Hoje, aturo o rock. Vou ao banheiro, lavo o rosto, visto um short e vou para a sala disposto a causar boa impressão à senhorita Regina Celi, que de babydoll, esbaforida, se degringola ao som de U2.

O tapete já fora arrastado e amarfanhado a um canto. Meu castiçal de prata foi profanado com a cara de um tipo até simpático que naquela manhã ganhará alguma coisa à custa do meu labor e cheque. A senhorita Regina Celi tem a cara afogueada, os pés e as pernas avançam e ficam no mesmo lugar, o corpo todo treme e sua, até que ela me estende o braço.

— Vem, papai!

O peso dos meus invernos e minhas banhas causa breve hesitação. Mas ali estamos, eu e a senhorita Regina Celi, uma menina que ainda pego no colo e aqueço com meu amor e o meu carinho, quando ela tem medo do mundo ou de não saber os afluentes da margem esquerda do rio Amazonas na hora do exame. Ela me chama e me perdoa.

Então, aumento o volume do som, espero o tal do U2 dar um grito histérico e medonho — e esqueço o cheque, a vida e a faina humana rebolando este cansado corpo-pasto de espantos — até que o fôlego e o U2 acabem na manhã e no som.

In: Crônicas para se ler na escola.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

Carlos Heitor Cony
Carlos Heitor Cony

É carioca. Além de romancista, publicou livros de crônicas, ensaios biográficos e adaptações de clássicos universais. Por quatro vezes ganhou o Prêmio Jabuti e por duas vezes o prêmio de Livro do Ano, concedidos pela Câmara Brasileira do Livro. Ganhou também o Prêmio Nacional Nestlé de Literatura, em 1997. Sua obra já lhe valeu, por seu conjunto, o Prêmio Machado de Assis, dado pela Academia Brasileira de Letras, da qual atualmente faz parte. Atualmente, é colunista diário da Folha de S.Paulo e comentarista da CBN. Suas crônicas são transcritas em diversos jornais do país.