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Passagem da noite

É noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.

E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia.
Não é dor, nem paz, é noite,
é perfeitamente a noite.

Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.
De novo andar: as distâncias,
as cores, posse das ruas.

Tudo que à noite perdemos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou; não nos diluímos.
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!

Reunião. 10. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980. p. 88.

Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade

Nasceu na pequena cidade de Itabira do Mato Dentro (MG), em 31 de outubro de 1902. Era o nono filho do fazendeiro Carlos de Paula Andrade e de sua mulher, Julieta Augusta Drummond de Andrade. Em 1910, iniciou o curso primário em Belo Horizonte, onde conheceu Gustavo Capanema e Afonso Arinos de Melo Franco.
A partir de 1918, tornou-se aluno interno do Colégio Anchieta, em Nova Friburgo (RJ), onde recebeu prêmios em concursos literários. No ano seguinte, foi expulso da escola, sob a justificativa de “insubordinação mental”. Mudou-se com a família em 1920 para Belo Horizonte, onde publicou seus primeiros trabalhos no Diário de Minas. Conheceu Milton Campos, Abgar Renault, Aníbal Machado, Pedro Nava e outros intelectuais.
Em 1924, enviou carta a Manuel Bandeira, manifestando-lhe admiração. No mesmo ano, conheceu Blaise Cendrars, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Mário de Andrade, que visitavam Belo Horizonte. Sua correspondência com Mário de Andrade, iniciada logo depois, duraria até o fim da vida do escritor paulista.