Vidas secas

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala.

Arrastaram-se para lá, devagar, sinha Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás.

[…]

Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, à beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida. Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardava lembrança disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas brilhantes aos objetos familiares, estranhava não ver sobre o baú de folha a gaiola pequena onde a ave se equilibrava mal. Fabiano também às vezes sentia falta dela, mas logo a recordação chegava. Tinha andado a procurar raízes, à toa: o resto de farinha acabara, não se ouvia um berro de rês perdida na catinga. Sinha Vitória, queimando o assento no chão, as mãos cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos antigos que não se relacionavam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusão. Despertara-a um grito áspero, vira de perto a realidade e o papagaio, que andava furioso, com os pés apalhetados, numa atitude ridícula. Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco. E depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra.

RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro: Record, 2009. [Fragmento]

Graciliano Ramos
Graciliano Ramos

Primogênito dos 16 filhos que teve o casal Sebastião Ramos de Oliveira e Maria Amélia Ferro Ramos, Graciliano Ramos nasceu em 27 de outubro de 1892 em Quebrangulo, no sertão alagoano. Morreu em 1953, no Rio de Janeiro. Escritor, jornalista e político. Publicou romances de cunho social, onde a paisagem e o homem nordestino são destaques.
Chegou a dirigir a Imprensa Oficial de Alagoas. Morou no Rio de Janeiro, onde trabalhou como revisor e redator nos jornais “Correio da Manhã” e “A Tarde”. Casou-se duas vezes e teve oito filhos.
Em 1928, voltou para o Nordeste, se elegendo prefeito na cidade de Palmeira dos Índios, em Alagoas. Por causa de suas idéias políticas, sempre preocupadas com o social, o governo de Getúlio Vargas mandou prendê-lo em 1936. A experiência vivida na prisão foi registrada em “Memórias do Cárcere” (1953).
Em 1939 foi nomeado inspetor federal de ensino secundário, no Rio de Janeiro. Sua principal incursão no mundo das letras foi com um mini-conto chamado de “Pequeno Mendigo”, que publicou no jornalzinho “Dilúculo”, em 1902, quando tinha 12 anos de idade.
Uma parte de sua obra só foi publicada depois de sua morte, em 1953. Como “Memórias do Cárcere”, que Graciliano não chegou a concluir, tendo ficado sem o capítulo final. Também merecem destaque “Linhas Tortas” (1962) e “Cartas” (1980). Com “Vidas Secas” (1938) chegou a receber o prêmio “Fundação William Faulkner”, na Virgínia (EUA).