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Repelindo o carteiro

Tenho, sim, um cão feroz que ameaça o carteiro; na verdade, eu o comprei com essa finalidade.

Correios lançam campanha para preservar os carteiros dos ataques de cães.

“SENHOR CHEFE DOS CORREIOS: dirijo-me a V.S. por causa do aviso que recebi de V.S., intimando-me a tomar medidas para evitar que o meu cão pitbull ameace o carteiro que atende a minha rua. Reconheço que a advertência é procedente.

Eu poderia, senhor chefe dos Correios, inventar uma desculpa: por exemplo, que o cão é inofensivo, e que as supostas ameaças correm por conta da paranoia do seu funcionário. Mas sinto-me na obrigação de falar a verdade. Tenho, sim, um cão feroz. E ele ameaça o carteiro.

Na verdade, eu o comprei exatamente com essa finalidade, ameaçar o carteiro. Posso explicar. Nunca fiz muita questão de receber correspondência. É só propaganda ou então, pior, são contas a pagar: luz, aluguel, telefone. Coisa no mínimo desagradável. Mas eu não iria brigar com o carteiro por causa disso; até comentava com ele, numa boa, a quantidade de dinheiro que tinha de gastar a cada mês.

Foi então que começaram a chegar as cartas anônimas. E aí a coisa mudou. Sou um homem de certa idade, um cinquentão. Casei-me tarde, com uma moça bem mais jovem do que eu e muito bonita. Casamos por amor, e nesses três anos temos sido muito felizes. Até a chegada das cartas.

Ah, que cartas são essas, senhor chefe dos Correios, que cartas. São escritas por alguém, um homem que garante ter um caso com a minha mulher. E esse alguém sabe tudo sobre nós. Sabe que viajo muito, a serviço da empresa para a qual trabalho, e diz que cada viagem minha é, para ele, um banquete do sexo. Garante que minha mulher na cama é um demônio e descreve minuciosamente as relações que tem com ela. Nunca desconfiei de minha esposa, senhor chefe dos Correios.

Para mim, ela é rigorosamente fiel. Mas as cartas eram tão convincentes que fiquei abalado e acabei falando-lhe a respeito. A coitada ficou desesperada, teve uma verdadeira crise de nervos. Jurou que aquilo era mentira, e que as cartas só podiam ser obra de um louco ou de algum inimigo que, sem saber, tínhamos arranjado.

Eu acredito nela, senhor chefe dos Correios. Tenho todos os motivos para acreditar nela. Mas cada vez que chegava uma carta, as suspeitas voltavam a me assaltar. Decidi falar com o carteiro. Expliquei o que estava acontecendo e pedi que destruísse as tais cartas, aliás facilmente identificáveis, porque os envelopes eram decorados com o desenho de uma cabeça com cornos.

O carteiro mostrou-se muito compreensivo e gentil; disse, porém, que tinha de cumprir com sua obrigação, que é a de entregar a correspondência. Sugeriu que eu próprio rasgasse as cartas sem ler. Mas isso seria inútil, senhor chefe dos Correios. Só de olhar o envelope já fico doente de fúria. Tomei então duas providências.

Em primeiro lugar, todas as minhas despesas são agora debitadas na conta bancária, de modo que já não preciso receber as contas de luz e as outras. E comprei o pitbull. Exatamente para que o carteiro não entregue mais as tais cartas. Agora, o senhor quer que eu contenha o cão.

O cão eu posso conter, senhor chefe dos Correios. Mas como conter o ciúme e a raiva? Hein, senhor chefe dos Correios? Por favor, me responda. Mas não por carta. Use o telefone.”

Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0809200802.htm>. Acesso em: 20 out. 2015.

Moacyr Scliar

Moacyr Scliar

Médico e escritor, Moacyr Jaime Scliar (1937-2011) nasceu em Porto Alegre (RS). Publicou mais de 60 livros, que abrangem vários gêneros e pelos quais recebeu numerosos prêmios. Tem livros traduzidos em vários idiomas. Sua obra é marcada pelo flerte com o imaginário fantástico e pela investigação da tradição judaico-cristã. Escrevia crônicas para os jornais Zero Hora e Folha de S.Paulo. Entre seus livros, destacam-se O carnaval dos animais, Histórias da terra trêmula, Os leopardos de Kafka, Manual da paixão solitária, O tio que flutuava, Navio das cores (infantojuvenis); Um país chamado infância, Dicionário do viajante insólito, O imaginário cotidiano (crônicas).