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Os Lusíadas (Adaptação)

O gigante Adamastor

O rei de Melinde, vivamente impressionado, seguia com grande atenção o relato de Vasco da Gama.

— Cinco dias depois de deixarmos aquela terra, seguíamos com ventos favoráveis por mares desconhecidos quando, numa noite, surgiu uma nuvem que tomou conta do céu. Era uma nuvem tão carregada e ameaçadora que encheu nossos corações de medo. Então, de repente, surgiu no ar uma figura robusta, com o rosto zangado, cor de terra. Tinha uma barba enorme, olhos encovados, cabelos desgrenhados e cheios de terra, a boca negra, os dentes amarelos. Era tão grande que, ao vê-lo, comparei-o ao Colosso de Rodes – uma das sete maravilhas do mundo antigo. Num tom de voz que parecia sair do mar profundo, arrepiando a todos nós, ele nos falou:

“— Ó gente ousada, mais que todas as que no mundo realizaram grandes façanhas, gente que nunca repousa de tantos trabalhos e tantas guerras, e que ousa navegar meus longos mares, jamais sulcados por navios desta ou de outras partes. Vocês, que vêm desvendar os segredos do oceano, ouçam agora de mim os castigos que os aguardam. Saibam que quantas naus se atreverem a fazer esta viagem que agora realizam terão esta paragem como inimiga, enfrentando grandes ventos e tormentas.”

E o gigante passou a fazer previsões sobre as terríveis desgraças que os portugueses sofreriam naquela região. Disse, entre outras coisas, que aplicaria um grande castigo em seu descobridor, Bartolomeu Dias, quando ele por ali passasse outra vez, e que a morte seria o menor mal para quem ousasse se aproximar dele.

“— Mas quem é você, afinal?” — perguntei.

“— Sou aquele grande cabo” — respondeu — “a quem vocês chamam das Tormentas. Marco o final da costa africana, neste promontório que aponta para o polo Antártico. Meu nome é Adamastor, lutei na guerra dos titãs contra Júpiter e os demais deuses. Fui incumbido de derrotar a armada de Netuno, e tamanha empresa aceitei por amor da ninfa Tétis, pois, sendo eu muito feio e grande, só me restava o caminho das armas para tirá-la da corte do deus do mar. Vindo a saber do meu intento, ela disse que se entregaria a mim, para livrar o oceano da guerra. Ah, como é grande a cegueira dos amantes! Desistindo da luta, uma noite fui encontrá-la. Vi-a aparecer ao longe, completamente nua. Como um louco, corri em sua direção; abracei-a e beijei-lhe os olhos, o rosto e os cabelos. Porém, a lembrança ainda dói, logo descobri o engano: não era Tétis que estava em meus braços, mas um monte selvagem. Tremendo de raiva, fui à procura de um lugar para esconder meu pranto e me esconder do escárnio. Nesse meio-tempo, meus irmãos gigantes foram derrotados pelos deuses e muitos deles aprisionados debaixo de montanhas. Quanto a mim, eles transformaram meu corpo em terra e meus ossos em rochas, para depois me estenderem aqui, debruçado sobre as ondas que tanto me lembram Tétis.”

— Ao terminar sua história – prosseguiu Vasco da Gama -, O gigante desapareceu diante de nossos olhos, em meio a um choro medonho. A nuvem negra se desfez e o mar bramiu. Levantando as mãos ao céu, que nos guiara de tão longe, pedi a Deus que afastasse de nós os desastres previstos por Adamastor.

Suas preces foram ouvidas. De manhã, o sol revelou aos portugueses o promontório em que o gigante fora transformado. Logo depois, a esquadra singrava as águas que banham a costa oriental da África.

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. In: BRAGA, Rubem; BRAGA, Edson Rocha. Os Lusíadas. São Paulo: Scipione, 1997. p. 42-45 (Adaptação).

Vocabulário

Melinde: cidade portuária localizada no atual Quênia.
Colosso de Rodes: estátua de bronze de Hélio (deus do Sol na mitologia grega), com cerca de 30 metros de altura, construída na entrada do porto de Rodes entre os anos de 292-280 a.C.
Sulcados: percorridos.
Intento: propósito, intenção.
Escárnio: zombaria, provocação.
Esquadra: conjunto de navios de guerra.
Singrar: percorrer, navegar (a vela).

Rubem Braga
Rubem Braga

Nasceu Cachoeiro de Itapemirim, ES, 1913 e morreu no Rio de Janeiro, RJ, 1990. Estreou na imprensa em 1928, com participação no jornal Correio do Sul, fundado pelos seus irmãos Jerônimo e Armando em Cachoeiro de Itapemirim. Mudou-se para Belo Horizonte MG, em 1931, onde passou a colaborar no Diário da Tarde.
Em 1932 fez a cobertura da Revolução Constitucionalista pelos Diários Associados. Ainda na década de 1930, trabalhou como repórter e cronista para periódicos como Diário de São Paulo e Folha da Tarde, entre diversos outros. Fundou a Folha do Povo, em 1935, em Recife, e a revista Diretrizes, no Rio de Janeiro, em 1938.
Entre 1944 e 1945 foi correspondente do Diário Carioca durante a Segunda Guerra Mundial, acompanhando a Força Expedicionária Brasileira na Itália. Em 1946 foram publicados seus poemas Senhor! Senhor!, Poeta Cristão, Adeus e Tarde (este último tradução de poema de Nuñez Aguirre) na Antologia de Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos, organizada por Manuel Bandeira. Nos anos seguintes foi cronista do Correio da Manhã, O Estado de S. Paulo e revista Manchete, além de colaborador em outros periódicos. Criou, com Fernando Sabino, a Editora do Autor, em 1960, e a Editora Sabiá, em 1967.
Foi embaixador do Brasil no Marrocos, entre 1960 e 1963. Integrou a equipe de jornalismo na TV Globo no período de 1975 a 1990. Rubem Braga, que fez algumas incursões pela poesia, é considerado por muitos estudiosos o maior cronista brasileiro. Seus poemas vinculam-se à segunda geração do modernismo