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O tesouro no quintal

Era uma família grande, a nossa: pai, mãe, cinco filhos. Grande e pobre. Papai, pedreiro, mal conseguia nos sustentar. Mamãe ajudava como podia, fazendo faxinas e costurando para fora, mas mesmo assim a vida era bastante difícil. Papai vivia bolando formas de reforçar nosso orçamento doméstico ou de, pelo menos, diminuir as despesas. Foi assim que lhe ocorreu a ideia da horta.

Morávamos numa minúscula casa de subúrbio, não longe de uma bela praia, que, contudo, raramente frequentávamos: era lugar de ricos. Casa pobre, a nossa, sem nenhum conforto. Mas, por alguma razão, tinha um quintal bastante grande. Do qual, para dizer a verdade, não cuidávamos. O capim ali crescia viçoso e no meio dele jaziam, abandonados, pneus velhos, latas, pedaços de tijolos e telhas. Papai olhava para aquilo, pesaroso: parecia-lhe um desperdício de espaço e de terra. Um dia chamou os dois filhos mais velhos, meu irmão Pedro e eu próprio, e anunciou: vamos fazer uma horta neste quintal.

Proposta mais do que adequada. Nós quase não comíamos legumes e verduras, porque eram muito caros. Mas, se plantássemos ali tomate, alface, agrião, cenoura, teríamos uma fonte extra de alimento – e o mais importante, sem custo.

Sem custo, mas não sem trabalho. Para começar, teríamos de capinar aquilo tudo e revirar a terra para depois plantar e colher. Meu pai não hesitou: vocês dois, que são os mais velhos, vão fazer isso.

Não gostamos muito da determinação. Não éramos preguiçosos, mas preparar a terra para fazer uma horta não era bem o nosso sonho e representaria um grande esforço. Contudo, não tínhamos alternativa. Quando papai dava uma ordem, era para valer. E, no caso, ele tinha o decidido apoio da mamãe, que era de uma família de agricultores e gostava de plantar.

Quem prepararia a terra? Foi a pergunta que fiz ao Pedro, que, além de mais velho, era o líder entre os irmãos. Pergunta para a qual ele já tinha a resposta:

– Isso é coisa para o Antônio.

Antônio era o irmão do meio. Com 9 anos, era um menino quieto, sonhador. Mas não era muito do batente, de modo que fiquei em dúvida: como convencê-lo a fazer o trabalho?

– Deixa comigo – disse Pedro, que se considerava muito esperto. – Eu sei como convencer o cara.

E sabia mesmo. Porque Pedro era dono de uma lábia fantástica, argumentava como ninguém. Ah, sim, e sabia contar histórias – inventadas por ele, claro. Era com uma história que pretendia motivar o Antônio a capinar o pátio.

Eu estava junto, quando ele contou a tal história. Era uma boa história: segundo um famoso professor, séculos antes piratas franceses haviam andado pela nossa região
e ali haviam enterrado um tesouro. Expulsos pelos portugueses, nunca mais tinham retornado, de modo que a arca com joias e moedas de ouro ainda estava no mesmo lugar,
que podia ser o pátio de nossa casa.

– O tesouro será a nossa salvação – concluiu Pedro , entusiasmado.

Antônio estava impressionado. Se havia coisa em que acreditava, era em histórias. Aliás, estava sempre lendo – era o maior frequentador da biblioteca do colégio.

– Quem sabe procuramos esse tesouro? – perguntou ele.

Era exatamente o que Pedro queria ouvir.

– Se você está disposto, eu lhe arranjo uma enxada…

Antônio mostrava-se mais do que disposto. No dia seguinte, um feriado, lá estava ele, enxada em punho, cavando a terra, diante do olhar admirado da família. Papai até perguntou o que tinha acontecido.

– Ele se ofereceu para fazer o trabalho – disse Pedro, dando de ombros.

Para encurtar a história: tesouro algum apareceu, mas, um mês depois, tínhamos uma horta no quintal. Antônio acabou descobrindo a trama de Pedro, mas não ficou zangado. Inspirado pelo acontecimento, escreveu uma história, com a qual ganhou um prêmio literário da prefeitura. Uma boa grana, que ele usou para comprar livros. Hoje é um conhecido jornalista e escritor. Acho que ele acabou, mesmo, encontrando o tesouro.

SCLIAR, Moacyr. O tesouro no quintal. Disponível em: <https://novaescola.org.br/conteudo/3235/o-tesouro-no-quintal>. Acesso em: 22 dez. 2021.

Moacyr Scliar
Moacyr Scliar

Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1937. Formou-se em Medicina em 1962, com especialização em Saúde Pública. Desde 1968, pratica o exercício de escrever ficção, ensaios, crônicas e literatura para jovens, sendo autor de aproximadamente 70 livros. Suas obras já foram traduzidas em mais de 20 países com grande aceitação da crítica. Detentor de vários prêmios concedidos no Brasil e no exterior, foi colunista dos jornais Zero Hora (Porto Alegre) e Folha de S.Paulo. Ocupou a cadeira nº 31 da Academia Brasileira de Letras. Faleceu em 27 de fevereiro de 2011.