fbpx

O socorro

Ele foi cavando, cavando, cavando, pois sua profissão – coveiro – era cavar. Mas, de repente, na distração do ofício que amava, percebeu que cavara demais. Tentou sair da cova e não conseguiu. Levantou o olhar para cima e viu que, sozinho, não conseguiria sair. Gritou. Ninguém atendeu. Gritou mais forte. Ninguém veio. Enrouqueceu de gritar, cansou de esbravejar, desistiu com a noite. Sentou-se no fundo da cova, desesperado. A noite chegou, fez-se silêncio das horas tardias. Bateu o frio da madrugada e, na noite escura, não se ouvia um som humano, embora o cemitério estivesse cheio dos pipilos e coaxares naturais dos matos. Só pouco depois da meia-noite é que lá vieram uns passos. Deitado no fundo da cova, o coveiro gritou. Os passos se aproximaram. Uma cabeça ébria apareceu lá em cima, perguntou o que havia:

— O que é que há?”

O coveiro então gritou, desesperado:

— Tire-me daqui, por favor. Estou com um frio terrível!

— Mas, coitado!– condoeu-se o bêbado– Tem toda razão de estar com frio. Alguém tirou a terra de cima de você, meu pobre mortinho!

E, pegando a pá, encheu-a de terra e pôs-se a cobri-lo cuidadosamente.

Moral: Nos momentos graves é preciso verificar muito bem para quem se apela.

FERNANDES, Millôr. Fábulas fabulosas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1991.

Millôr Fernandes
Millôr Fernandes

Nasceu em 1923 no Rio de Janeiro, no bairro do Méier. Órfão de pai e mãe ainda na infância, começou a trabalhar na imprensa aos quinze anos de idade. Autodidata convicto, foi prosador, poeta, dramaturgo, tradutor, ilustrador, chargista, roteirista de cinema e compositor. No fim dos anos 1960, foi um dos fundadores de O pasquim, o principal veículo de imprensa alternativa do Brasil na época da ditadura militar. Em mais de seis décadas de atividade, publicou mais de trinta livros, e traduziu outras dezenas deles. Millôr faleceu em 2012, aos 88 anos de idade.