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Língua para todes: um ensaio sobre o gênero neutro

O português é uma língua conhecida por marcar gênero. Mas o que isso significa e como essa discussão tem mobilizado ativistas LGBTQIA+ para que repensemos seu uso? A linguista Jana Viscardi escreve sobre permanência e mudança nas línguas

É bem provável que você venha se deparando com a vogal “e” no fim de algumas palavras, como no título deste artigo. Às vezes essa flexão se dá pelo uso do “x” ou do “@” (todxs, tod@s), mas não se restringe a essas variações. O recurso vem ganhando popularidade porque ativistas LGBTQIA+ passaram a questionar a variação binária de gênero no português. Quem não se identifica com o pronome feminino ou masculino encara como violência uma designação do tipo. A discussão, acalorada nas redes sociais, extrapolou a internet e transformou-se em debate político. Em novembro, um tradicional colégio carioca, o Liceu Franco-Brasileiro, adotou a neutralidade em sua comunicação. Dias depois, o deputado federal Junio Amaral (PSL-MG) apresentou projeto de lei para proibir o uso da linguagem em instituições de ensino e bancas examinadoras no Brasil. Na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, Carlos Bolsonaro (PSC-RJ) tomou medida parecida e quer proibir o uso de “novas formas de flexão de gênero e de e de número” do português. Ou seja, banir a neutralização de gênero no vocabulário. A medida valeria nas escolas municipais mantidas pela Secretaria Municipal de Educação, na rede particular de ensino da cidade e em editais de concursos da Prefeitura. O projeto ainda prevê punições para os colégios particulares que desobedecerem a medida, como advertência e suspensão do alvará de funcionamento.

Aqui, a linguista Jana Viscardi escreve sobre permanência e mudança nas línguas e abre a discussão.

“Meu nome é Jana Viscardi, sejam todes muito bem­­vindes a este canal.” É assim que costumo começar meus vídeos no YouTube. E, frequentemente, recebo como resposta o questionamento “bem-vindes?”. O estranhamento é comum, mas tem sido menos frequente. Explico, sempre, que as formas “todes” e “bem-vindes” fazem parte do gênero neutro, que vem sendo usado por diferentes comunidades de falantes. No entanto, é preciso dizer, a criação de formas do gênero neutro não é nova, tampouco exclusiva, do português brasileiro: no mundo todo há discussões sobre como o gênero (incluindo o gênero neutro) é empregado nas línguas.

Foto: Bárbara Quintino

Para começarmos esta conversa, é preciso falar rapidamente – e resumidamente – sobre gênero gramatical em português. Você deve se lembrar, ainda dos tempos de escola, que em português as palavras são definidas como “femininas” ou “masculinas”. Mas elas podem ter características bem diferentes: há as que apresentam gênero único, como lanterna; há as que têm dois gêneros, como moço/moça; há aquelas em que os dois gêneros não implicam oposição de membros de uma mesma espécie, como bolo e bola, e há ainda aquelas em que o gênero é marcado no artigo, como em o/a dentista. Um detalhe “interessante”: as formas masculinas, quando em oposição a formas femininas, como em moço/moça, são chamadas de formas neutras e o feminino derivaria do masculino, numa explicação gramatical no melhor estilo Adão e Eva. Por essas características, convencionou-se dizer que gênero gramatical é uma categoria que nada tem a ver com gênero social.

Até aqui, parece tudo muito claro e imutável, não? No entanto, o gênero das palavras pode mudar ao longo do tempo. Veja o caso da palavra planeta, que já foi feminina e hoje é masculina. As razões para essas escolhas podem ser variadas e incluem, ao contrário do que muitos gramáticos nos querem fazer crer, fatores considerados “externos” à língua, a saber, as relações de seus falantes com o mundo.

Você deve ter observado que não falei especificamente do gênero neutro. A razão? A gramática normativa não prevê uma forma neutra de gênero. No entanto, no dia a dia se veem por aí variadas formas neutras circulando. É possível, por exemplo, encontrar publicações usando “amigxs”, “amig@s” ou “amigues”. Não são as únicas, no entanto: tem sido usado também o pronome “elu” – e também “ilu” ou “el” – para se referir a pessoas que não se identificam com o padrão binário de gênero representado pela oposição masculino versus feminino.

Foto: Bárbara Quintino

Mas, então, se essas formas estão aí, no cotidiano, qual o problema? Uma das “reclamações” sobre o emprego do gênero neutro ou de escolhas que, por exemplo, questionem o masculino genérico é justamente o fato de que tais formas “deturpariam” a língua portuguesa.

E aqui há algo de interessante: falantes de uma língua refletem sobre ela e têm um entendimento sobre aquilo que ela é – ou deveria ser. Essa representação de uma língua vai sendo construída a partir de vários fatores, como os conhecimentos adquiridos no processo de escolarização, os conhecimentos que partilhamos com nossa comunidade, as hierarquias sociais nas quais a nossa produção linguística está inserida, as interações em que estamos imersos cotidianamente. A partir dessa representação do que a língua viria a ser, é comum que muitas pessoas a entendam como algo imutável, um espelho da gramática normativa, com características “robustas” e que não devem ser mexidas ou reviradas, porque a norma culta, por mais que não seja seguida por ninguém o tempo todo em nossas vidas, seria uma referência idealizada do que a língua “deveria ser”, uma marca de estabilidade na nossa existência cotidiana.

Uma mudança como o gênero neutro representaria o fim dessa tal “estabilidade” projetada, idealizada. Assim, os debates que se acirram dentro e fora das redes nos mostram que a língua, em constante transformação, é um espaço de disputa de poder e de reafirmação e reconfiguração de dinâmicas sociais. É um lugar de constituição de identidades. Além disso, projetamos nela nossos entendimentos de mundo, explicitados naquilo que definimos como “pode” e “não pode”.

Assim, muitas vezes as “reclamações” sobre mudanças na língua e, nesse caso, sobre o uso do gênero neutro revelam aquilo que esperamos das outras pessoas e, com isso, o poder que acabamos por exercer sobre a existência dessas pessoas. Há também aí uma discussão que perpassa a “moral”, aquilo que se espera da comunidade em que vivemos. No entanto, como sociedade e como língua, somos mais do que apenas a forma como vemos a realidade no nosso entorno. Há mais no mundo do que nossos próprios olhos – e ouvidos – alcançam. E reconhecer isso não impede sua existência no mundo e o uso da língua como você a conhece, caso esteja confortável com ela.

É, na verdade, na imposição de um ideal de língua imutável que repousa o impedimento da existência – e resistência – das outras pessoas, que não se veem representadas e acolhidas pela língua da forma como se manifesta hoje, a partir do sistema binário masculino-feminino.

Essa representação idealizada da língua como algo autônomo e distante da realidade social contrasta com as transformações vividas pelas línguas do mundo todo e que derivam, também mas não só, da atuação das comunidades de falantes sobre a língua. Como num cabo de guerra, aqueles que são contrários às mudanças se impõem sobre a língua (e falantes) como se a eles ela pertencesse.

Nesse processo de negação, muitas pessoas afirmam que o neutro “nem sequer existe em português”. Mas basta passear por publicações nas redes sociais, em revistas e em teses e artigos científicos para encontrar diferentes manifestações da forma neutra. Essa afirmação nos faz retornar para esse lugar da língua idealizada, descrita na gramática normativa, e que não documenta tudo o que está sendo produzido hoje pelos falantes da língua portuguesa. É possível afirmar com certeza quais dessas formas se estabelecerão como fixas na língua? Não. Mas esses movimentos levam os falantes a pensar e repensar seus usos. Além disso, perguntar-se se essas formas permanecerão na língua daqui a 20, 30 anos é diferente de negar ou impedir sua ocorrência hoje.

A postura inquieta e muitas vezes raivosa daqueles (aqui, deliberadamente uso o masculino) que se opõem às mudanças linguísticas em curso aponta na direção contrária à de seu próprio argumento, de que se trata de uma “bobagem” ou “mimimi”

Jana Viscardi

Se, em contrapartida, sua preocupação está vinculada à possível discriminação que formas neutras ainda presentes na escrita, como -@ e -x, podem causar em pessoas com deficiência que usam softwares de leitura para acessar informações escritas, minha sugestão é, em vez de simplesmente condenarmos formas neutras ainda em variação na escrita, ampliarmos o debate, trazendo para a conversa as empresas desenvolvedoras de softwares de leitura, para que pensem, junto a linguistas, em soluções que possam acolher e adaptar a leitura por software de textos que fazem uso de -x e -@. Aproveito também para sugerir que incluam a leitura de palavras já bastante usadas na escrita cotidiana, como “vc” e “tb”, em vez de “você” e “também”, entre tantas outras formas que não são lidas pelos softwares e que nada têm a ver com o gênero neutro.

A postura inquieta e muitas vezes raivosa daqueles (aqui, deliberadamente uso o masculino) que se opõem às mudanças linguísticas em curso aponta na direção contrária à de seu próprio argumento, de que se trata de uma “bobagem” ou “mimimi”. Todas as discussões e tensões (re)correntes sobre o gênero neutro nos mostram que, na verdade, falar de língua é falar também de mudanças sociais e, nesse caso, falar das mudanças de um sistema que pode ser também chamado de cistema, em que a norma é a heteronormatividade expressa pelo sistema binário do feminino-masculino. Sendo a língua também um lugar de existência e resistência, é nela que se travarão também esses embates E também as mudanças.
Você sabia, por exemplo, que o uso do masculino genérico foi sendo estabelecido na língua inglesa com o argumento de que as mulheres eram inferiores aos homens? Eis, pois, as formas de poder na língua.

E se você é da turma do “e a fome no mundo?”, “e os analfabetos?”, saiba que uma dada reflexão e ação no mundo não impede nem tampouco diminui outra, ou outras. Assim, segue sendo possível reconhecer o emprego do gênero neutro e, ao mesmo tempo, pensar e agir para dirimir o número de analfabetos no mundo e o número de pessoas que estão abaixo da linha da pobreza.

Saiba, também, que fazer uso do gênero neutro para se referir às pessoas que se sentem representadas por ele ou passar a adotá-lo porque você se sente mais confortável assim não é fazer parte de uma “ditadura linguística”, como alguns sugerem. É, na verdade, atuar num movimento de transformação de um sistema que, como atestam linguistas e antropólogas, foi pensado por homens e para homens. A acolhida, na língua, de outras identidades não implica a exclusão da identidade masculina, mas dá espaço para as variadas existências na nossa sociedade, que vão além da binaridade de gênero.

Saiba, também, que fazer uso do gênero neutro para se referir às pessoas que se sentem representadas por ele ou passar a adotá-lo porque você se sente mais confortável assim não é fazer parte de uma “ditadura linguística”, como alguns sugerem.

Jana Viscardi

Não se esqueça: a língua é também um lugar de manifestação de violências. E insistir em não (re)co­­nhecer, na língua e na vida, identidades distintas da sua porque, supostamente, a língua é imutável – o que sabemos, a essa altura, que não é – é contribuir para a manutenção da violência e da invisibilidade na língua. O gênero neutro é uma das formas que nos levam a agir em outra direção, oposta à da violência.

Para finalizar, é sempre importante lembrar que essa é uma discussão ampla, que permite diversas abordagens e aprofundamentos. Essa conversa que estabeleço aqui pretende agregar e não esgotar as reflexões – e ações – em torno do tema.

Jana Viscardi* é doutora em Linguística pela UNICAMP, tem um canal no Youtube em que discute questões de linguagem e comunicação e oferece cursos sobre o tema

Disponível em: <https://revistamarieclaire.globo.com/Comportamento/noticia/2020/12/lingua-para-todes-um-ensaio-sobre-o-genero-neutro.html>. Acesso em 9 ago. 2021.