Uma das observações que devem ser feitas sobre as diferenças entre uma gramática descritiva e outra normativa é que, além do caráter prescritivo desta estar ausente naquela, a gramática descritiva não pode valer‐se de critérios estéticos (bonito, elegante, fino etc.), puristas ou quaisquer outros menos científicos. Uma gramática descritiva deve dizer, da forma mais objetiva possível, como é uma língua ou uma variedade, como é usada essa língua ou essa variedade.
Os linguistas têm desenvolvido gramáticas descritivas das línguas ou de suas variedades à luz de diferentes quadros teóricos produzidos no interior da linguística. Assim, por exemplo, pode‐se descrever uma variedade utilizada por determinado grupo de falantes – variedade que pode coincidir ou não com a norma culta –, estabelecendo‐se as suas regras de formação e uso; essa descrição poderá enfocar aspectos sintáticos, semânticos, fonéticos etc. Em suma, as gramáticas, apesar de não avalizarem preconceitos linguísticos, elegem variedades a serem descritas e o fazem segundo determinado construto teórico, o que faz com que também elas não sejam neutras.
Outra diferença entre gramática normativa e a descritiva é a noção de erro. Para a primeira, toda realização linguística que esteja fora dos padrões estabelecidos como ideais é considerada errada. E, para a gramática descritiva, existe erro? Sim: segundo essa concepção de gramática, é erro o que não ocorre sistematicamente na língua, em nenhuma de suas variedades. Suponha‐se, por exemplo, que o enunciado “a gente vamos” não tenha sido encontrado em um estudo descritivo da norma culta falada no Brasil; mas, confirmando‐se que essa construção ocorra sistematicamente em outra variedade do português, ela não é um erro, e sim uma inadequação à norma culta.
Além das gramáticas normativa e descritiva, pode‐se considerar mais um conceito de gramática, a internalizada.
De acordo com esse conceito, saber uma língua pode ser entendido como ter internalizada a gramática dessa língua. É segundo essa perspectiva que se diz que todo falante nativo do português sabe o português, sabe a gramática de sua língua e conhece as diferenças das variedades linguísticas com as quais tem contato. Assim, vistas sob essa perspectiva, concordâncias como “a gente vamos” e “nós vai” não são erradas, já que são fruto do conhecimento linguístico de falantes do português no Brasil. São fruto de um processo de construção de uma gramática que teve como base as relações sócias vivenciadas pelo falante e uma capacidade para a linguagem, inata e presente em todos os seres humanos que não possuem patologias que os impeçam de construí‐la.
Marina Célia Mendonça. Língua e ensino: políticas de fechamento. In: Fernanda Mussalim e Ana Cristina Bentes (orgs.). Introdução à linguística: domínios e fronteiras. v.2. 3.ª ed. São Paulo: Cortez, 2003, p. 237‐8 (com adaptações).