A morte brinca com balas nos dedos gatilhos dos meninos. Dorvi se lembrou do combinado, o juramento feito em voz uníssona, gritado sob o pipocar dos tiros:
— A gente combinamos de não morrer!
Limpou os olhos. Lágrimas apontavam diversos sentimentos. A fumaça que subia do monturo de lixo ao lado, justificava qualquer gota ou rio-mar que surgisse e rolasse pela face abaixo. Era a fumaça, desculpou-se consigo mesmo e cantarolou mordiscando a dor, a canção do Seixas: “Quem não tem colírio usa óculos escuros.”
A morte incendeia a vida, como se essa estopa fosse. Molambos erigem fumaça no ar. Na lixeira, corpos são incinerados. A vida é capim, mato, lixo, é pele e cabelo. É e não é. Na televisão deu:
— Mataram a mulher, puseram o corpo na lixeira e atearam fogo!
Dorvi respirou e aspirou fundo. Mas que merda, pó contaminado, até parece talco para pôr na bunda de neném. Pois é, meu filho nasceu. Um pingo de gente. Quando Bica me mostrou nem tive coragem de olhar direito. Pequeno, tão pequeno! Deveria ter ficado na barriga da mulher, ou melhor, incubado como semente dentro do meu caralho. Quis cutucar o putinho com a ponta de minha escopeta. Bica se afastou como se o filho fosse só dela. Não sei para que o medo.
Não sei porque o medo, pensou Bica. Se ao menos o medo me fizesse recuar, pelo contrário, avanço mais e mais na mesma proporção desse medo. É como se o medo fosse uma coragem ao contrário. Medo, coragem, medo, coragemedo, coragemedo de dor e pânico. A festa está se dando. Balas enfeitam o coração da noite. Não gosto de filmes da tevê. Morre e mata de mentira. Aqui, não. Às vezes a morte é leve como a poeira. E a vida se confunde com um pó branco qualquer. Às vezes é uma fumaça adocicada enchendo o pulmão da gente. Um tapa, dois tapas, três tiros… Minha mãe brincava assim com a gente: “Um elefante amola a gente, amola! Dois elefantes amola a gente, amola, amola! Três elefantes amola a gente, amola, amola, amola, quatro elefantes”…
A vida é tanta amolação. A minha mãe ia e ia. Seguia amolando a gente com aquela cantiga besta, mas que me fazia feliz. Idago, meu irmão, não. Ele ficava puto e mandava a velha calar a boca. Puta ficava a mãe. Era mesmo o final dos tempos! Onde já se viu, filho mandar a mãe calar? Ela não calava, cantava mais alto ainda. Um dia, com tanta raiva, cantou tão alto, que quando parou estava rouca e soluçando. Idago olhou para ela de soslaio, pediu a benção e saiu. Nem desceu o morro. Vacilou, dançou. Minha mãe recebeu a notícia que ela já esperava. Foi lá, acendeu uma vela perto do corpo. Uma fumacinha-menina dançava ao pé de Idago. Só ela, a fumacinha, a mãe e eu ali velamos o corpo de meu irmão. Um tapa, dois tapas, elefantes, patas pisam na gente. Escopetas, como facas afiadas, brincam tatuagens, cravam fendas na nossa tão esburacada vida. Balas cortam e recortam o corpo da noite. Mais um corpo tombou. Penso em Dorvi. Apalpo o meu. Peito, barriga, pernas… Estou de pé. Meu neném dorme. Ainda me resto e arrasto aquilo que sou.
Saraivadas de balas, de instantes em instantes, retumbam no interior da casa, ameaçando a diversão da mãe de Bica e de Idago. Dona Esterlinda levanta irritada e muda de canal de televisão. Lá fora, balas e balas, independente do desejo da mulher, executam continuadamente a mesma e seca sonata. Uma programação mais amena vai entorpecendo os sentidos da mulher.
O que mais gosto na televisão é de novela. Acho a maior bobeira futebol, política, carnaval e show. Bobagem também reportagem, campanha contra a fome, contra o verde, contra a vida, contra-contra. Contra ou a favor? Sei lá, confundi tudo. Acho que é contra mesmo. Contra e não. Contra-mão. Ando sentindo dores nas pernas. Também! “Lata d’água na cabeça, lá vai Maria”. Sobe o morro, desce o morro e se cansa dessa dança. Filhos? Não sou boba, só dois. Cuspi fora uns quatro ou cinco. Provoquei. “Eu confessor, me confesso a Deus, meu zeloso guardador, bendito sois vós, que olhe por mim” Na novela das oito, Lidiane era babá do menino Carlos Rodrigues Magnânimo. Ela ensinou a criança a rezar. Tudo era grande na casa dos Rodrigues Magnânimo. A casa, o carro, a mesa, o guarda-roupa, o tapete, tudo. O vestido de noiva da tia de Carlos Rodrigues vestia todo o caminho do altar. Atravessava de ponta a ponta o corredor de uma grande igreja. É tão bom ver novela. Não gosto de ver os crimes, roubos e nem noticiários de guerra. Novela me alivia, é a minha cachaça. Hoje, me lembro que exatamente hoje, há cinco anos, meu filho desceu o morro e caiu. Idago era tão bonito! Podia trabalhar na televisão, feito aquele negro que é ator. Podia ser cantor também. Tinha o dom. Cantava e assobiava tão bem quando era menino. Foi crescendo e ficando cada vez mais calado, irritado, brigando sempre comigo e com a irmã Bica. Tudo amolava Idago. Lembrei da musiquinha que aprendi com a minha mãe e acho que ela aprendeu com a mãe dela. Um dia Idago cantou assim para mim: “uma mãe amola a gente, uma irmã amola a gente, um inimigo amola a gente, um policial amola a gente” e foi dizendo uma porção de coisa que amolava a vida dele. Acho que para Idago, o mundo era só amolação.
Eu, Bica, sei um pouco do segredo. Um pouco do saber basta. O saber compromete, penso eu. Idago sabia, falou, dançou. Morreu. Feriu o código de honra, a palavra dada. A palavra que não se escreve, pois escrita está na palma e na alma de cada um. É preciso trazer sempre a mão aberta. O jogo é limpo. Traiu, caiu. Idago mereceu. Aliás, era traidor desde menino. Um bundão, safado. Na escola, era todo mundo, ou quase todos a destelhar a cantina para pegar a merenda armazenada. Uns subiam, outros vigiavam. Só queríamos os biscoitos, comer com antecedência, o que era nosso. Premiar a nossa fome anterior, a do momento e a posterior. Sei lá se era um jogo inocente ou maldoso. No outro dia debochávamos da cara dos professores. A diretora se descabelava toda. Ela sabia que era armação dos alunos. Sabia também que alguns tinham outras artimanhas. Traziam a coisa escondida por dentro do sapato, lá no cantinho da meia. E depois tudo transitava de mãos em mãos feito aquela brincadeira inocente de passa anel. Um dia Idago brigou com um da turma. Aí melou. Deu com a língua nos dentes. Vomitou tudo. Falou do telhado, dos biscoitos, do incenso proibido que, lá no fundo da escola ou até nos banheiros, adocicava o ar e também do talco mágico nos pés de alguns. Os grandes ficaram putos com ele. Mandaram dizer para mãe, que cuidasse da boca traidora do filho dela. Língua cortada não fala. Logo depois chegaram e pediram para que a mãe chamasse o peste. Um menino maior, que mancava devido a uma bala perdida, segurava com as mãos a boca de Idago. E outro derramou um vidro de pimenta pela goela adentro daquele que cultivava a língua venenosamente solta. Pimenta nos olhos dos outros não arde. Aquela ardeu nos olhos de mãe e até nos meus. Ela e Idago choravam. Eu quase. Pimenta talvez. Afinal meu irmão já não era tão inocente. Estava com onze anos; eu tinha doze. Ele já sabia o alcance de suas palavras. Sabia do alcance de falas como aquelas. As palavras, às vezes, feriam segredos e escorregavam pela ladeira abaixo parando lá na delegacia.
Alguém cantou a pedra e o segredo foi rompido. A desgraça vaza dos poros da terra. O mundo explode. Seres de mil mãos agarram tudo. Nada escapa. Tudo se torna objetos agarráveis: gente, coisa, bicho… Às vezes me pego assustado diante da tevê. O mundo explode é aqui mesmo. Quem derramou o pó há de juntar toda a poeira. Faca amolada corta e pode ser um jogo lento, ótima tortura. Arranco os bagos do filho da puta que me traiu. Acerto as contas, as minhas. Levo o concluído e entrego ao bacana. Nunca falhei. Ele retira o que é dele e devolve o que é meu. Hoje não terá devolução alguma. Devo. Falta. A dívida do outro é minha dívida. É? O apartamento da chefia é bonito. Olhando para baixo vê o mar. Quero a morte lenta e calma. Quero boiar no profundo fundo do mar. Quero o fundo do mar-amor, onde deve reinar calmaria. É lá no profundo fundo que vou construir um castelo para a morada de meu filho. Bica, predileta minha, vai também. Ela sabe que da ponta da escopeta também sai carinho. No fundo do mar, mundo algum explode. Bica, dileta minha, a vida explode. Explode, ode, ode, ode… Mar-amor. O meu desejo é um castelo de areia? Nem sei… Um dia, copo de uísque na mão, de lá de cima olhei o mar. Eu era grande, no alto de tudo. O mar lá embaixo abrindo todo, todo. Grande é o mar. Quando não estou com minha arma por perto, me borro de medo. Tenho vontade de chorar. Olhando o mar lá de cima, vi que pequeno sou eu. O outro, o que me fornece, estava na sala com os amigos e me chamou para dentro. É um pessoalzinho meio besta. Não tenho ilusão. O que temos em comum é o pó do qual somos feitos. É o pó que nos faz, mais nada. Mas o meu pó corre mais perigo. Meu pó vira cinza rápido. Quem incendeia? Pode ser a polícia, pode ser qualquer um de nós mesmo, grupos rivais. Quero o fundo do mar. Quero a predileta minha e o meu putinho que nasceu. Um dia vou ser navegante. Vou comprar um barco-estrela com três lugares. Tou doido, viagem legal. A terra vai explodir no mundo-canal da televisão. Aqui fora já explode, malandro! A primeira vez eu não sabia aspirar tudo. Os desejos, os sonhos, a viagem, tudo se atracou na minha garganta. Nem falar eu podia. Um dia vou ser navegante. Quero fazer uma viagem profunda, pro fundo do mar-amor. Predileta minha, o putinho meu e eu, os três… A viagem funda que afunda. A vida vale? A dívida é minha? Com quem dividir essa dívida? Essa dúvida? Dileta minha, putinho meu…
A babá Lidiane, da novela das oito, acabou sozinha. Não gostei do final. Assisti outra novela em que a babá casou com o filho do patrão. Bonito, tudo muito bonito. Chorei de emoção. Quando choro diante de novela, choro também por outras coisas e pela vida ser tão diferente. Choro por coisas que não gosto nem de pensar. Dorvi é companheiro de Bica, minha filha. Fizeram um filho, meu primeiro netinho. Acho que não terei tantos. Não vou deixar Bica virar mulher parideira. Isso de ter muitos filhos era do meu tempo. Nem eu virei. Que Deus me perdoe! Será que minha alma vai padecer no fogo do inferno? Outro dia me contaram que Dorvi está complicado. Eu pensei outro futuro para os meus filhos. Idago, pois é, acabaram com o garoto. Bica é tão inteligente. Na escola sempre se saiu bem, conseguiu estudar até a oitava série. Gosta de televisão, mas tem a mania de implicar com as minhas novelas. Diz que eu vivo no mundo da lua. Engano dela. Eu sei que Dorvi está complicado. Não tem culpa. Ou tem? Conseguiu estabelecer um ponto, arriscou a pele e mantém o próprio negócio, mas confiou na pessoa errada. E agora o pessoal do Baependi, o tal fornecedor, quer a paga. Disseram que, se Dorvi levou um banho, eles é que não vão se banhar na mesma água. Eu sempre gostei de Dorvi, menino que eu vi crescer. Regula idade com Bica, mas não é o companheiro que eu queria para ela. E acho que nem ela. Eu tenho esperanças de que Bica, a minha menina, não sei quando e como, terá outro destino. Desde pequena era atenta a tudo. Já teve outros namorados, inclusive um rapazinho crente. Bom menino, mas Bica não gostou dele. Dizia que ele era um banana. Eu não entendia por que. Um menino tão bom e ainda com a garantia de estar longe das drogas. Foi aí que ela encrespou. Bica disse que ele era drogado sim. Drogado pela Bíblia, pelo pastor, pela igreja, enfim. Que nem vontade própria tinha. Não entendi nada, mas passei a observar o menino. Ele realmente parece uma pessoa sem sustância, sem a coragem de Dorvi. Essa diferença eu noto, mas não sei explicar. Acho que se Dorvi fosse crente, ele daria um bom cristão. Peço a vida para dar um bom tempo para ele. Dorvi está preso por um fio. Puxo o assunto com minha filha. Bica é escorregadia feito baba de quiabo.
Porra, o cara me deu um banho e eu estou escorregando na água dele, com sabão de lavar cachorro. O prazo dele está terminando e o meu também. Busco aquele puto no inferno, pois sei que os homens de Baependi vão me buscar também. Eles me catarão debaixo da saia da minha mãe, se preciso for. E a gente combinamos de não morrer. Que merda, selamos agora a própria morte. E o meu putinho e a dileta minha, onde estão? Bica é menina esperta. É mulher de muita visão. Penso no risco que estou correndo. Risco não, tudo já é certo. A solução está definida. O destino traçado.Não há recuo. Não estou aflito. Não estou desesperado. Não estou calmo. Não estou inocente ou culpado. Apenas estou sabendo que daqui a pouco, questão de um dia e meio, não estarei mais. Nem eu, nem ele. Acabo com ele, mas isto não resolve. Outros acabarão comigo. Nosso trato de vida virou às avessas. Morremos nós, apesar de que a gente combinamos de não morrer. A morte às vezes tem um gosto de gozo? Ou o gozo tem um gosto de morte? Não esqueço o gozo vivido no perigo de meu primeiro mortal trabalho, na minha primeira vez. Um dia os homens subiram o morro. O combinado era o enfrentamento. Até então eu só tinha feito trabalho pequeno. Vigiar, passar o bagulho, empunhar armas nos becos, garantindo a proteção dos pontos na calada da noite. Naquele dia mandaram que eu fosse enfrentar também. Eu tinha treze anos. No meio do tiroteio, esporrei, gozei. E juro que não era de medo, foi de prazer. Uma alegria tomava conta de meu corpo inteiro. Senti quando o meu pau cresceu ereto, firme, duro feito a arma que eu segurava nas mãos. Atirei, gozei, atirei, gozei, gozei… Gozei dor e alegria, feito outro momento de gozo que me aconteceu na infância. Eu estava com seis para sete anos e arranquei com as minhas próprias mãos, um dentinho de leite que dançava em minha boca. Minha mãe me chamou de homem. Cuspi sangue. Limpei a baba com as costas da mão, ainda tremendo um pouco, mas correspondi ao elogio. Eu era um homem. Tive um prazer intenso que brincou no meu corpo todo. Tive até um princípio de ereção. Hoje outro prazer ou desprazer formiga o meu corpo por dentro e por fora. Vou matar, vou morrer. É lá no mar que vou ser morrente. Mar-amor, mar-amar, mar-morrente. É no profundo do fundo, que guardarei para sempre as lembranças de meu putinho e da dileta minha.
A casa de Neo caiu. Aprontou, dançou! Mais um, que não será o último, outros virão. Ele, Dorvi, Idago, Crispim, Antônia, Cleuza, Bernadete, Lidinha, Biunda, Neide, Adão e eu temos ou tínhamos (alguns já se foram) a mesma idade. Um ano e às vezes só meses variavam o tempo entre a data de nascimento de um e de outro. Alguns morreram também em datas bem próximas. Apalpo o meu corpo, aqui estou eu. Entre as mulheres quase todas ficaram menstruadas juntas, pela primeira vez. Brincávamos que íamos misturar as nossas regras e selarmos a nossa irmandade com o nosso íntimo sangue. Os meninos não sei que juras fraternas fizeram. Ah, sei! Dorvi repetia sempre que entre eles havia o pacto de não morrer. Entretanto Dorvi sumiu e Neo também. De Neo já temos notícia. Dançou ao som da música da escopeta de Dorvi. E Dorvi? Nem a mãe dele sabe, nem eu que sou sua mulher, só adivinho só. O que dizer para o nosso filho à medida que ele crescer. Quero outro futuro para ele. Será que ainda há dor por vir? E Dorvi? Não sei. E só faço escrever, desde pequena. Adoro inventar uma escrita. Um dia na escola, com meus sete ou oito anos, a professora passou um exercício. Era o de dividir as palavras em sílabas e a partir daí formar novas palavras. Eu já estava de saco cheio (força de expressão que menina não tem saco). Para desconsertar a moça, pedi para ir ao quadro escrever as que eu tinha formado. E escrevi pó, zoeira, maconha. E fui escrevendo mais e mais. Craque, tiro, comando leste, oeste, norte, sul, vermelho e verde também. Na verdade, naquele momento, eu já estava arrependida e queria voltar para o meu lugar. Se é que tenho algum. Mas escrever funciona para mim como uma febre incontrolável, que arde, arde, arde… A professora olhava querendo ser natural, a turma ria e eu escrevia. Gosto de escrever palavras inteiras, cortadas, compostas, frases, não frases. Gosto de ver as palavras plenas de sentido ou carregadas de vazio dependuradas no varal da linha. Palavras caídas, apanhadas, surgidas, inventadas na corda bamba da vida. Outro dia, tarde da noite, ouvi um escritor dizer que ficava perplexo diante da fome do mundo. Perplexo! Eu pedi para ele ter a bondade, a caridade cristã e que incluísse ali todos os tipos de fome, inclusive a minha, que pode ser diferente da fome dos meus. Falei, mas pelo menos naquele momento, me pareceu que ele fazia ouvidos moucos.
Quem sabe os nossos Orixás que são Humanos e Deuses descrevam para esse escritor outras e outras fomes, aumentando assim, mais ainda, a perplexidade dele. Penso em Dorvi a todo o momento. Ele é para mim um presente incompleto e um futuro vazio. Provavelmente Dorvi não virá mais. Ele que tinha um trato de viver fincado nessa fala desejo:
— A gente combinamos de não morrer.
— Deve haver uma maneira de não morrer tão cedo e de viver uma vida menos cruel. Vivo implicando com as novelas de minha mãe. Entretanto, sei que ela separa e separa com violência os dois mundos. Ela sabe que a verdade da telinha é a da ficção. Minha mãe sempre costurou a vida com fios de ferro. Tenho fome, outra fome. Meu leite jorra para o alimento de meu filho e de filhos alheios. Quero contagiar de esperanças outras bocas. Lidinha e Biunda tiveram filhos também, meninas. Biunda tem o leite escasso, Lidinha trabalha o dia inteiro. Elas trazem as menininhas para eu alimentar. Entre Dorvi e os companheiros dele havia o pacto de não morrer. Eu sei que não morrer, nem sempre é viver. Deve haver outros caminhos, saídas mais amenas. Meu filho dorme. Lá fora a sonata seca continua explodindo balas. Neste momento, corpos caídos no chão, devem estar esvaindo em sangue. Eu aqui escrevo e relembro um verso que li um dia. “Escrever é uma maneira de sangrar”. Acrescento: e de muito sangrar, muito e muito…
EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Pallas Editora, 2016.