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Meu engraxate

É por causa do meu engraxate que ando agora em plena desolação. Meu engraxate me deixou.

Passei duas vezes pela porta onde ele trabalhava e nada. Então me inquietei, não sei que doenças mortíferas, que mudança pra outras portas se pensaram em mim, resolvi perguntar ao menino que trabalhava na outra cadeira. O menino é um retalho de hungarês, cara de infeliz, não dá simpatia nenhuma. E tímido o que torna instintivamente a gente muito combinado com o universo no propósito de desgraçar esses desgraçados de nascença. “Está vendendo bilhete de loteria”, respondeu antipático, me deixando numa perplexidade penosíssima: pronto! estava sem engraxate! Os olhos do menino chispeavam ávidos, porque sou dos que ficam fregueses e dão gorjeta. Levei seguramente um minuto pra definir que tinha de continuar engraxando sapatos toda a vida minha e ali estava um menino que, a gente ensinando, podia ficar engraxate bom. É incrível como essas coisas são dolorosas. Sentei na cadeira, com uma desconfiança infeliz, entregue apenas à “fatalidade inexorável do destino”.

Pode parecer que estou brincando, estou brincando não. Há os que fazem engraxar os sapatos no lugar onde estão, quando pensam nisso. Há os como eu, que chegam a tomar um bonde comprido, vão até a rua Fulana, só pra que os seus sapatos sejam engraxados pelo “seu” engraxate. Há indivíduos cujo ser como que é completo por si mesmo, seres que se satisfazem de si mesmos. Engraxam sapato hoje num, amanhã noutro engraxate; compram chapéu numa chapelaria e três meses depois já compram noutra; conversam com a máxima comodidade com os empregados duma e doutra casa e com todos os engraxates desse mundo. Indivíduos assim me dão uma impressão ostensiva de independência feliz, porém não os invejo.

De primeiro, faz talvez vinte anos, meu engraxate foi trabalhar com o meu freguês barbeiro. Era cômodo, ficava tudo perto da minha casa de então. Meu barbeiro, serzinho de uma amabilidade tão loquaz que acabou me convencendo da perfeição da gilete, logo me falou que aquele engraxate falava o alemão. Perguntei por passatempo e o italiano fizera a guerra, preso logo pelos austríacos. Era baixote, atarracado, bigode de arame e uma calvície fraternal. Se estabeleceu uma corrente de forte interdependência entre nós dois, isso o homenzinho trabalhou que foi uma maravilha e meus sapatos vieram de Golconda. Nunca mais nos largamos. Entre nós só se trocaram palavras tão essenciais que nem o nome dele sei, Giovanni? Carlo? não sei. Um dia ele me contou baixinho, rápido, que mudava de porta. Foi o que me deu a primeira noção nítida de que o meu barbeiro era mesmo duma amabilidade insustentável. Mudei com o meu engraxate e, pra não ferir o barbeiro, que a final das contas era um homem querendo ser bom, me atirei nos braços da gilete a que até agora sou fiel.

Veio o dia em que a engraxadela aumentou de preço. Só soube muito mais tarde, por acaso, meu engraxate não me contou nada, preferindo ficar sem gorjeta, não é lindo! Nos fins de ano, jamais pediu festas, eu dava porque queria. Hoje, tanto as festas como as pequenas gorjetas me produzem um sentimento de mesquinhez, não sei por que dificuldades meu engraxate terá passado, quanto lutou consigo e com a mulher. A final não aguentou mais esta crise, vamos ver se vender bilhete rende mais!

O menino, até me deu raiva de tanto que demorou. (Meu engraxate também demorava demais quando era eu, mas não dava raiva.) O menino, pra falar verdade, engraxou tão bem como o meu engraxate e meus sapatos continuaram vindo de Golconda. Não sei… não voltei mais lá. Faz semana que não engrax o meus sapatos. Sei que isso não pode durar muito e o mais decente é ficar mesmo freguês do menino, porém minha única e verdadeira resolução decidida é que vou comprar bilhetes de loteria. Não tenho intenção nenhuma de tirar a sorte grande mas… mas que mal-estar!…

ANDRADE, Mário de. Os filhos da Candinha. São Paulo. Martins. 1963. p. 167.

Mário de Andrade

Mário de Andrade

Mário de Andrade (1893-1945), paulista da capital, que cantou como nenhum outro, estreia com livro de poesia em 1917. Sua primeira obra modernista foi Paulicéia desvairada (1922). Foi um dos organizadores da Semana de Arte Moderna, na qual palestrou e recebeu muitas vaias. Teórico do Modernismo, além da obra pessoal, consagrou-se à militância jornalística, institucional e epistolar. Com Macunaíma (1928), atingiu o apogeu da prosa modernista. Praticou uma poesia de andamentos dilatados e poemas extensos, voltada para a meditação. Principais livros: Paulicéia desvairada (1922), Losango cáqui (1926), Clã do jabuti (1927), Remate de males (1930), Poesias (1941) e Poesias completas (1966).