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Herança de Maria

Foi a mãe quem teve ideia de comprar a pensão, do outro lado da rua, diante da barbearia onde eles moravam nos fundos. Aquilo que seria a Pensão Alto Paraná era um sobrado sujo e fedido, com camas piolhentas e privadas escuras, que serviram para ela pedir baixa no preço. Conseguiu, deu algum dinheiro como sinal, pegando o maço de notas da renda semanal da barbearia, que ia enrolando numa velha lata de bolachas para depositar na poupança na sexta-feira. E sempre contaria com orgulho que, quando o marido soube, perguntou se ela estava ficando louca; ela respondeu rindo:

— Louca de vontade de ter meu próprio negócio.

Naquele tempo, mulher não trabalhava fora de casa e, além disso, parecia mesmo uma loucura comprar a prazo na Pernambucanas duas dúzias de colchões, e com sacos de farinha fazer lençóis e travesseiros recheados de taboa, que moleques pagos com tostões foram cortar nos brejos. Outra Maria, nordestina, miúda e musculosa, com nenê nos braços, bateu palmas perguntando por serviço, ela perguntou o nome, depois perguntou o que a mulher sabia fazer, e guardaria a conversa na lembrança para contar vida afora:

— O que eu não “suber” fazer, dona, aprendo ligeirinho.

— Mas como vai ser arrumadeira com nenê no colo?

— É filho de cearense com baiano, dona, nem chora pra não gastar água. Começo já ou agora?

— Tanto faz. Mas também me chamo Maria, você precisa arrumar outro nome, não pode ser Maria Arrumadeira? – e a outra também diria vida afora que a primeira coisa que arrumou ali foi o próprio nome.

PELLEGRINI, Domingos. Herança de Maria. São Paulo: Leya, 2011. [Fragmento]